domingo, 29 de março de 2009

MUSEU JAGUARIBANO - Pinturas do século XIX são descobertas em restauração.


Paisagens que lembram dunas e falésias das praias de Aracati estão sendo recuperadas durante o trabalho de restauração (Foto: Melquíades Júnior)


Jovens de Aracati participam do trabalho de restauração de pinturas em motivos florais


A equipe encontrou as paredes com camada de tinta sintética, comum nos anos 90. Tinham cor homogênea


É aplicado solvente químico e as camadas mais externas em tinta sintética sofrem fissuras e desaparecem


Sem as camadas sintéticas, são encontradas pinturas à base de cal. É feita a raspagem, que mostra a pintura original


Obedecendo a intenção da pintura original, os restauradores reforçam com tinta os detalhes do acabamento


As pinturas são figuras geométricas, florais e paisagens que lembram dunas, falésias e mangues das praias de Aracati.

Aracati. Uma casa tem sua estrutura restaurada e, apesar de já se saber da importância histórica de sua arquitetura, seus móveis e do forte simbolismo da rua em que está situada, foi durante as obras de restauração que mais uma mina histórica foi encontrada. Por trás de várias camadas de tinta há riqueza plástica nas paredes do Museu Jaguaribano, em Aracati. Durante as prospecções, descobriram-se pinturas datadas do século XIX, com figuras geométricas, florais e paisagens que lembram as dunas, falésias e mangues das praias da cidade. O Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional (Iphan) deverá concluir a restauração do museu até o mês de junho.

A casa onde fica o Museu Jaguaribano, em Aracati, tem mais de 200 anos e durante esse tempo seus compartimentos foram pintados seis, sete vezes. O local foi residência, colégio, clube e hotel até ser museu, em 15 de novembro de 1968, há 41 anos. “Começaram a mexer no prédio e descobriram que havia coisa por baixo daquela tinta nas paredes, fizeram a prospecção, e o Iphan solicitou a restauração”, explica o chefe da equipe de restauro das pinturas originais do Museu Jaguaribano, Emanuel Albuquerque.

“A pintura está excelente, muito bem conservada. O artista inspirou-se nas dunas, nas paisagens do Cumbe (uma vila litorânea), mangues e lagoas”, afirma Emanuel. De fato, logo das janelas do quarto piso do casarão é possível avistar as dunas da Praia de Canoa Quebrada. A paisagem vista do horizonte da janela é repetida nas paredes de um dos prédios históricos mais importantes de Aracati – o museu e a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário são marcos da ocupação colonial do Ceará, por meio de Aracati.

Cinco pessoas trabalham na restauração das pinturas. Destes, dois são da própria cidade de Aracati, selecionados pelo restaurador Emanuel Albuquerque. Os jovens Ronaldo Brás, 21 anos, e Uili Santos, 24 anos, têm a oportunidade de conhecer o patrimônio histórico local. E tornam-se mão de obra qualificada, pois outro casarão ao lado, onde morou o Barão de Messejana no século XIX, também está precisando ser restaurado.

“Nas cidades em que vamos, procuramos treinar pessoas do lugar, e ensinar o ofício da restauração. Sempre formamos auxiliares de restaurador, para que outros casarões e igrejas — há vários templos seculares em Aracati — sejam recuperados. E provamos que as pessoas daqui têm conhecimento, e passam a respeitar mais aquele patrimônio local”, afirma Emanuel Albuquerque, que tem trabalhos de restauração no Theatro José de Alencar, Casarão Tomás Pompeu (também em Fortaleza), Museu de Aquiraz, Museu do Dnocs e imagens sacras em cidades do Interior.

Em edição do dia 20 de abril de 2008, reportagem do Caderno Regional já anunciava os primeiros achados de pinturas antigas nas paredes do Museu, que tinha acabado de retomar os trabalhos de restauração, então suspensos por falta de recurso e por questões burocráticas com a desapropriação do prédio vizinho. A equipe atual de restauradores, também formada por Magda Mota e Ricardo Santos, ambos de Fortaleza, tiveram dificuldades ao retirar as camadas de tinta mais próximas do original — no século XIX, as pinturas de casas de barões eram feitas por verdadeiros mestres, que utilizavam técnicas próprias, como óleo de linhaça, de baleia e ovos numa mistura química que dava mais consistência e durabilidade às pinturas. A dificuldade da equipe é retirar a pintura imediatamente sobreposta à original.

O segundo e o terceiro piso são os que mais apresentam pinturas mais detalhadas, com desenhos. Praticamente tudo está sendo recuperado pela equipe de Emanuel Albuquerque. Os desenhos mais desgastados, como alguns florais, são reconstituídos pela equipe, “mas sem causar muita interferência na parte ainda existente”, assegura Albuquerque.

CENTRO TEMÁTICO
Pavimentos trarão a história do Ceará


Aracati. Um lugar ilustre de um morador ilustre. Foi o prédio do Museu Jaguaribano, antes de tudo, a casa do José Pereira da Graça, conhecido como Barão de Aracati (1812-1889), um aristocrata que foi juiz desembargador, deputado três vezes pela província do Ceará, ministro do Supremo Tribunal de Justiça e vice-governador da província do Maranhão. O Museu comemorou 40 anos e, há quatro anos, teve início a restauração pelo Iphan. Quando concluída a reforma, será um dos principais centros temáticos que conta a história do Ceará. Um elevador é instalado para facilitar o acesso dos cadeirantes.

Um dos casarões mais altos de Aracati — juntamente com o casarão do Barão de Messejana, na mesma rua (desativado, à espera de reparos) — o Museu Jaguaribano guarda um acervo histórico com peças de Limoeiro do Norte, Russas, inclui livros, móveis antigos e equipamentos inusitados, como um canhão de guerra. No térreo, havia um comércio, no segundo e terceiro pisos era a parte residencial do barão, e no quarto, um depósito multiuso.

Dentro do projeto de restauração do Museu, e seguindo a temática de cada andar, o primeiro piso terá instrumentos referenciais dos ciclos econômicos, com máquina de tear e o carro de boi; no segundo ficarão os móveis da Era Colonial (que também estão sendo restaurados); o terceiro abrigará obras sacras, como imagens de santos, telas de pintura etc; e o quarto piso servirá de ateliê, espaço para oficinas de artes.

“O Museu é regido pela sociedade civil, sem cor política partidária e a finalidade maior é a preservação da cultura da região jaguaribana”, afirma José Correa, presidente do Museu. Durante sua existência, o prédio passou por problemas. Conforme ele, foi necessário cortar espaços da casa, demolir paredes que escondiam a estrutura original do prédio. “Mas, no fim, o trabalho foi bom, a reconstituição do prédio”.

IMPORTÂNCIA
Obra é estímulo à preservação do patrimônio público


Aracati. A Rua Coronel Alexanzito, a Rua Grande, é o principal sítio histórico reconhecido em Aracati. Nela, situam-se prédios construídos entre os séculos XVIII e XIX. Desde o tombamento pelo Iphan, todas as intervenções públicas, como obras de saneamento, são acompanhadas de arqueólogos. O Museu é considerado carro-chefe das obras de preservação do patrimônio histórico.

Mas historiadores e arqueólogos reconhecem que muitos fósseis e vestígios foram destruídos na cidade, principalmente pelo desconhecimento quanto ao valor histórico de construções e objetos antigos, por parte de quem fazia intervenções. O restaurador Emanuel Albuquerque denuncia o descaso no casarão do Barão de Messejana. “O lugar possui desenhos originais nas paredes que precisam ser restaurados”.

Para a Superintendente do Iphan no Ceará, Olga Paiva, Aracati é rica em conhecimento histórico, e a conclusão da reforma no Museu será estímulo à preservação do patrimônio público e um passo para que outros sejam revalorizados.

ORIGINAL
ESTÁGIOS

1 TINTA. A equipe encontrou as paredes com camada de tinta sintética, comum nos anos 90. Tinham cor homogênea

2 SOLVENTE. É aplicado solvente químico e as camadas mais externas em tinta sintética sofrem fissuras e desaparecem

3 RASPAGEM. Sem as camadas sintéticas, são encontradas pinturas à base de cal. É feita a raspagem, que mostra a pintura original

4 ORIGINAL. Obedecendo a intenção da pintura original, os restauradores reforçam com tinta os detalhes do acabamento

Mais informações:
Iphan
(85) 3221.6360/ 3221.6263
e-mail: 4sr@iphan.gov.br
Museu Jaguaribano de Aracati
(88) 9902.5275

Fonte: Jornal Diário do Nordeste

domingo, 15 de março de 2009

Arneiroz - Aonde a arte nos leva


Tarde quente de um sábado de fevereiro. Ruas vazias na pequena cidade de Arneiroz, região dos Inhamuns. Além da temperatura média de 28º na sede do município, há poucos atrativos naquela hora para a população em torno de sete mil habitantes. Em uma casa modesta afastada do Centro, componentes do grupo de teatro Arte Jucá se preparam para fazer uma apresentação improvisada a convite da equipe de reportagem.

Enquanto compõem os personagens através da introdução da indumentária cênica, do lápis na sobrancelha e da nova máscara facial que faz o "cavalo descer" e atuar, os atores falam da relação que o grupo mantém com os moradores. "Há uma proximidade da cidade com a gente. O público de Arneiroz já é crítico", explica Mazé Cavalcante, presidente do grupo. "Definimos o nosso teatro como teatro afetivo. É visceral, porque é feito para o público e com o público, na rua", completa Robson Cavalcante, ator e diretor artístico.

Não é preciso esperar muito para entender que o Arte Jucá se confunde com um processo de transformação pela cultura que vem sendo vivenciado pelo município. O grupo mesmo, tem sido alvo de monografias de estudantes universitários da região. Já prontos para a apresentação, começamos a caminhar pelas pequenas ruas de calçamento irregular até a praça central aonde farão a improvisação.

O calor não é empecilho para quem carrega no corpo as roupas pesadas que em breve se tornarão leves quando o espetáculo ganhar forma. Nas ruas, a intimidade do artista com o público abre espaço para perguntas sobre famílias locais. No trajeto, crianças e adultos cumprimentam com orgulho os representantes da cidade que agora são alvo de fotos e entrevistas. Na praça, aos poucos, expectadores vão chegando para acompanhar. Nas casas, janelas se abrem.

A história dessa movimentação artística na cidade começou em 1994 quando as escolas públicas iniciou uma série ações além da formação convencional, destaca Robson. É a partir daquele ano, segundo o ator, que os estudantes começam a ter contato com a linguagem mais elaborada. Em 2000, o teatro ganha força na escola municipal Maria Dolores Petrola. "Essa iniciativa transpôs os muros da escola porque muitos alunos estavam deixando os estudos e nasce o Arte Jucá", afirma Mazé.

O Arte Jucá é considerado hoje uma referência de cultura do Ceará, tendo ao todo 82 pessoas envolvidas com diversas linguagens. Na esteira do grupo, surgiram o CIA Jucá de Dança Contemporânea, Caboko M (Música Cabaçal), Reisado Mestre EMA, Mazé e Banda (MPB), e a miniorquestra O Bando. Robson explica que isso foi possível porque o grupo trabalha em duas vertentes, que são a profissionalização e a formação de platéia. Um dos projetos se dá na Escola Maria Dolores Petrola, com o desenvolvimento de um laboratório de arte compartilhada, onde a idéia é unicamente fazer a experimentação da arte.

A apresentação se encerra e é preciso deixar a cidade. Na despedida, uma certeza. O movimento artístico na pequena cidade dos Inhamuns é prova de que o cearense é capaz de superar o determinismo socioeconômico. A palavra Arneiroz, que teve sua colonização iniciada no começo do século XVII, origina-se de uma antiga freguesia de Portugal, que significa terreno estéril ou arenoso. Ali, 300 anos depois, pelo lúdico, se deu o contrário. E se for verdade, que quando se quer saber para onde caminha a humanidade, deve-se mirar na arte, Arneiroz já traçou o seu destino.

Notinhas

- Na cidade, além do Arte Jucá, outros grupos estão produzindo arte, destacando-se o Jumbalaia Company (dança com estudantes até a 4ª séria), Muquiarte (teatro, circo e música), Planalto Arte e Cultura (teatro), e o Figueirarte (teatro). Segundo Robson Cavalcante, o interesse de jovens por fazer parte dos grupos tem gerado uma demanda reprimida dos jovens.

- Em 2003 foi criada a Associação dos Amigos da Arte, Ciência e Cultura de Arneiroz, que passou a subsidiar o Arte Jucá. Com ela o grupo obteve apoio legal para buscar recursos visando a execução de projetos. Também fortaleceu a relação com a cidade. Hoje são 200 sócios que contribuem mensalmente. Isso permitiu uma atividade intensa todo o ano utilizando as linguagens do teatro, da dança, música, audiovisual e folguedos populares, além da participação e viagens fora da cidade e do Estado.

- O município de Arneiroz foi criado em 14 de março de 1957, através da Lei Nº 3.554. O seu processo de colonização, porém, remonta a primeira década do século XVIII. Os irmãos Francisco Alves Feitosa e Lourenço Alves Feitosa foram os pioneiros da colonização dos Inhamuns, fazendo com que Arneiroz fosse um dos primeiros lugares colonizados nos Inhamuns. A colonização dos Inhamuns está diretamente ligada a Freguesia de Arneiroz, em Portugal, cujas terras pertenceram à capela de São Mateus (Jucás). Desse processo originaram-se várias disputas, envolvendo famílias em locais diversos, dentre estes clãs do tronco Feitosa e Monte e a dizimação da tribo dos índios jucás.

Frase
"Ceará tem figuras impressionantes. Maravilhosas, do ponto de vista dramático"
Ana Miranda, escritora

Fonte: Jornal O Povo

Nova Olinda - Talhado no Couro


Espedito Seleiro se perde e se acha entre sua obra: chinelos, bolsas, gibões, chapéus, sela e selins, cordas de laçar e chicotes. A oficina é perfumada de couro. Tem marrom em vários tons. Que vem do gado abençoado que o mestre respeita e usufrui. Na parede, o desenho de Lampião e Maria Bonita, ornados e protegidos pela pele do boi, para que fugissem das volantes matagal seco adentro. Também tem São Jorge, Frei Damião e Santo Expedito. "Meu nome é com S, porque não sou nem americano".

De tanto abonitar os arreios e selas dos vaqueiros, ganhou o sobrenome artístico. O batismo é Espedito Veloso de Carvalho. Tá nos 68, cheio de orgulho do que já criou nesta vida de gado. Viu tanto o pai e o avô talhando o couro, desenhando, criando em cima da pele do bicho, que aprendeu. Os três filhos também sentiram a fragrância e se encantaram. Se você não puder ir a Nova Olinda, o jeito é ir para a Internet (www.espeditoseleiro.com) ou ligar (88)3546 1432. O mestre Espedito Seleiro acha que não, mas já é uma grife faz tempo.


O POVO - O senhor é devoto de Santo Expedito?
Espedito Seleiro - É o meu santo de fé. Tem o meu mesmo nome. Acho que até hoje ele me ajuda. A pessoa tá com 68 anos, sadio, que não caiu de nenhum cavalo, acho que meu santo é protetor, não é? Mas também gosto de visitar São Francisco, lá de Canindé. Também vou rezar no Padre Cícero todo ano. Eu mesmo faço minha romaria e vou.

OP - Por que o senhor acha que é importante manter e ensinar um trabalho como o seu de geração para geração?
Espedito - Acho que tem tudo a ver com o nosso Ceará, nosso sertão, nosso lugar. Eu, por exemplo, via meu avô trabalhando nisso aqui para se manter. Além de servir para você se manter e sua família, é uma tradição que alguém que não conhece chega aqui para ver um chapéu. Dá muita gente de fora. Acha bonito, mas se a gente não disser que é chapéu de vaqueiro, não sabe. É por isso que a gente mantém até hoje.

OP - Para o senhor, o que é essa sabedoria do fazer? O que representa essa sua arte?
Espedito - Acho que a gente já nasce aprendido. Não tem aula disso aqui. Eu que já dei muitos cursos por aí afora, é difícil o cara aprender. Mas eu já nasci dentro da oficina, vendo meu pai fazer e aprendi. Com os meus filhos, do mesmo jeito. "Casa de pai, escola de filho". Se não tiver um sanguinho de vaqueiro, não é vaqueiro nunca.

OP - O senhor foi vaqueiro?
Espedito - Não, meu pai que era. Que aprendeu a fazer os equipamentos para vaqueiro com o pai dele. Eu aprendi também algumas coisas com meu pai.

OP - O senhor teve instrução completa na escola?
Espedito - Não. Estudei só o suficiente. Ler um pouquinho, escrever umas coisinhas. Não tive muito tempo de estudar, não.

OP - A sua faculdade foi o couro?
Espedito - É, foi o couro.

OP - Mais seu pai, avô e bisavô?
Espedito - É uma herança que ninguém nunca tomou.

OP - O senhor é um homem rico, então, com isso aqui?
Espedito - Eu me considero rico, sim. Porque nunca fui empregado de ninguém, um caboco nunca mandou na minha vida nem eu mandei na vida de ninguém. Um bocado trabalha comigo, mas eu não mando na vida de ninguém, só faço pedir.

OP - O senhor chegou a pedir para seus filhos virem trabalhar aqui?
Espedito - Eles já nasceram dentro da oficina. Estudavam e trabalhavam. Eu, como nasci no sertão dos Inhamuns pracolá, o cabra estudava a carta de ABC num pedaço de pau. Eu não tinha tempo de aprender.

OP - São quantas horas por dia na oficina?
Espedito - Eu me levanto da cama às quatro e vou dormir às dez da noite. Se tiver a quem vender, tô vendendo. Se não, tô trabalhando.

OP - E esse perfume que sai do couro?
Espedito - Pra mim, é uma saúde. É um cheiro doce e abençoado. É o couro do gado. Você sabe que gado é abençoado, né?

OP - O senhor compra o couro onde?
Espedito - Direto do curtume. Compro em Juazeiro do Norte, Juazeiro da Bahia e Campina Grande. Não gosto de ver o gado sendo morto, mas vivo dele. Os outros exploram e eu termino. A riqueza do sertão é essa mesmo.

OP - O que é Nova Olinda para o senhor?
Espedito - É tudo na minha vida. Cheguei aqui em 1951, tinha entre 8 e 10 anos. Nasci em Campos Sales. Meu pai voltou pro sertão, foi ser vaqueiro lá em Assaré e eu fiquei. Comecei fazendo só sela, gibão, chapéu, equipamento pra vaqueiro. Tinha bastante encomenda. Todo mundo na época tinha que ter um cavalo gordo na roça e uma sela boa que Espedito Seleiro fazia.

OP - E o senhor ainda quer ficar quanto tempo fazendo esse trabalho?
Espedito - Eu acho que enquanto puder trabalhar e tiver um pouco de saúde, fico aqui mesmo. Pra ir embora daqui, também não vou. Já teve quem me oferecesse um prédio com maquinário completo para eu ir pra São Luis. Não vou de jeito nenhum. Acho bom é o cara de São Luis vir aqui pra comprar de mim. Que é pra ajudar a mim e ao pessoal da cidade. Não é bom assim?

OP - E o senhor participou de um desfile?
Espedito - Fui para o desfile da Cavalera (grife de moda), no São Paulo Fashion Week. Fiz as peças para o desfile, eles me convidaram para assistir e eu fui. Também desfilaram com umas roupas minhas na Mangueira.

OP - O senhor sabe que também já uma grife?
Espedito - (Risos) Sei não.

OP - Já vende pro Brasil todo?
Espedito - Até pro mundo inteiro.


FRASE:
"O cearense tem muito o que nos ensinar", cardeal Aloísio Lorscheider, ex-arcebispo de Fortaleza

Fonte: Jornal O Povo

Irauçuba - Nascer Rabecas


No miúdo Juá, território da árida Irauçuba, um erudito - que mal sabe desenhar o nome - arranha o clássico Assum Preto na rabeca cor de vinho. Para ser fiel e risos do cicerone, "tinta vermelha de caneta" Bic. Silvino Veras D´Ávila se apresenta, para quem não é filho do povoado, como o mestre Vino, dos 91 anos, dois casamentos, 21 filhos assumidos, 40 netos e 80 bisnetos. Dali em diante, o chafurdado alpendre-oficina da casa se transforma em palco para forasteiros que chegam de longe no rastro de conhecer o fazedor de violino caboclo. E o enxame se faz. Parentes, vizinhos escorados no batente, passarinho de gaiola, menino curioso, cachorro e até quem se aproveita para pedir um auxílio.

Dizer a verdade, o luthier é hoje a biografia mais conhecida entre os 1.600 habitantes do distrito de Juá e redondezas. E, sem exagero, é mais visitado que a padroeira Nossa Senhora da Conceição (festejada apenas nos dezembros), que o Vila Juá Futebol Clube e o açude São Gabriel. Foi por causa de seu Silvino, arrisca Chagas Galdino - proprietário do clube dançante Forró do Farofa -, que descobriram Juá no mapa do mundo e do Ceará. "Se não fosse a arte de mestre Vino, ninguém acertava com o caminho daqui".

Graças ao dom de transformar pedaço de madeira em rabeca e carpir acordes, seu Vino virou verbete na Internet, homem de entrevistas, objeto de estudo acadêmico e mestre da cultura cearense e do mundo. Título concedido em 2007 pelo governo do Estado. Mas antes, muito antes, ele já era mestre. Popular e erudito. Erudição nordestina, brasileira. Desde os anos 30, quando fez ranhar a primeira rabeca. "Mal feita, mas cantou".

E de lá pra cá, quantas rabecas teriam sido concebidas por mestre Vino? "Hein? Mais de 100", chuta, meio mouco em orelhas grandes. Foi não. Puxando das lembranças, vai buscar em 1935 o entusiasmo de ter conseguido dar vida ao primeiro instrumento e ter virado artesão. "Então, tá pra mais de 100, né?". Ora 100! "Só pra uma professora de Irauçuba vendi 20, ela fez uma orquestra que tem o meu nome (Banda de Música Mestre Vino de Irauçuba)", enche o peito e levanta a vista meio às cegas.

Problema que não é motivo de resmungo para quem tem 91 anos e está no limite da estrada que já aponta o destino. Os olhos podem até ter perdido naturalmente "90% da luz", mas as pernas ainda obedecem e as mãos enxergam o martelo, o serrote, o cipilho, o escopo, a faca pra raspar e outros cafiotes separados em sacos plásticos. Cada saquinho, depois do ofício, é pendurado por ele em pregos da parede.

No dia em que estivemos por lá, na manhã quente de uma segunda-feira de fevereiro e moscas de inverno, havia um esqueleto de rabeca exposto no mourão usado como mesa de criação. "Levo um mês pra fazer uma. É mal feita porque não tem maquinário, mas toca bem. Por cem mil réis (cem reais) já vendi muitas pra Fortaleza, Brasília, Sobral, Manaus, Irauçuba e até Portugal", mapeia o reconhecimento levado na bagagem alheia.

O caminho que leva à cidadezinha de Juá aparece no Google Earth. Quem não souber acessar, tome a BR-222 rumo ao sertão. Em Irauçuba, o mundo inteiro indica onde fica o Juá de mestre Vino. São 20 quilômetros de estrada carroçável até chegar à rua José Fernandes Filho, numeral 388 da Funasa. Lá tem uma placa de metal, com o rosto e o nome do rabequeiro. Se chegar no fim da tarde, depois do "expediente" do luthier, procure-o, feliz da vida, se servindo de uns goles de Zinebra e miolo de pote na bodega de seu Tarcísio.


NOTAS

- Mestre Vino diz que já tocou em festa de São Gonçalo, Reisado, Carnaval e até no Circo Filipinho. O que pedir ela acompanha: xote, baião, maracatu, marcha, frevo, bolero, fox, mazurca, mas sua preferência é pela valsa. Nos arrasta-pés onde se danava, "toda mulher bonita era minha namorada".

- A rabeca de mestre Vino leva raiz de juazeiro nas laterais, cumaru e umburana de cheiro na parte da frente e fundo. No que chama de pescoço (braço) emprega pau-d´arco. Segundo ele e o filho Francisco José, madeira já derrubada no mato que não prejudica a natureza.

- No livro Rabecas do Ceará, de Gilmar de Carvalho, estão catalogados 105 rabeqieiros. A maior parte deles está em Tauá (Inhamuns) e Guaraciaba do Norte (Ibiapaba) com 16 e 12, respectivamente.

- Gilmar de Carvalho entrevistou luthier em Irauçuba, Uruoca, Saboeiro, Arneiroz, Varjota, Granja, Aurora, Quiterianópolis, Baixio, Graça, Carnaubal, Viçosa do Ceará, Itapajé, Reriutaba, Boa Viagem, Acopiara, Senador Pompeu, São Benedito, Quixadá, Crateús, Iço, São Benedito, Tianguá, São Luis do Curu, Pedra Branca, Caririaçu, Parambu, Quixeramobim, Umirim, Iracema, Mombaça, Madalena, Miraíma, Quixadá, Itapipoca, Novo Oriente, Sobral, Tabuleiro do Norte, Juazeiro do Norte e Independência.

- A tradição de fazer e tocar rabeca, segundo Gilmar de Carvalho, vem do "kamantché" persa, passa pelas cordas européis e por um "surpreendente e dionisíaco instrumento de aroeira, couro e tripas de carneiro, conhecido por nabim, fabricado e tocado em Crateús".

- A maior parte dos rabequeiros do Ceará tem idade avançada. Mas algumas iniciativas tentam passar a tradição. No município de Itapajé, há programa de iniciação musical com rabeca; em Nova Olinda, a ONG Casa Grande é a multiplicadora. Em Juazeiro do Norte, há experimentação da luteria. E bandas como Dona Zefinha (Itapipoca) usam o instrumento.

Fonte: Jornal O Povo

Santana do Cariri - A batalha dos coronéis


Hoje é calma e orgulho, mas já foram batalhas de morte. Homens no tempo dos mosquetões em punho e pólvora socada no cano da arma. Fardões contra o gibão. Rastro de sangue, crueldade, dor e medo. População saqueada e afugentada pelas investidas dos bandos de cangaceiros a cavalo com suas espingardas e facões, gritando para matar ou morrer. Do outro lado, entrincheiradas, tropas de capangas firmando rifles, facas, punhais e o que pudessem usar para proteger seus patrões e a cidade. Dentro de uma motivação particular de somente dois senhores. Pavor em dias de "fogo" (era como chamavam os ataques) que datam apenas de 1920.

Agora tudo é apenas gente pacata, lugar sombreado, silencioso, paz e beleza ao sopé ocidental da Chapada do Araripe. A espada contra a bala da chamada Guerra dos Coronéis é um conto muito recente da história de Santana do Cariri. Os livros e a oralidade ainda começam a recontar essa passagem. Foram quase dez anos de luta armada. A disputa do senhorio local para ter a posse da Intendência do município - ainda nem havia prefeitura.

Mesmo a guerra pode ser contada como um grande momento da história de uma gente. De um tempo seguinte que ajudou a desenvolver o lugar e o sentimento de pertença. Diz-se que o major Manoel Alexandre Gomes, que mandava feito coronel, queria a todo custo ser intendente de Santana. Tinha como aliado de batalhas um irmão do temido Lampião. Valia tudo para destituir do cargo o coronel Felinto da Cruz Neves, que morava na Casa Grande, no centro da cidade, e era homem respeitado.

Parecia não ser só ambição e poder político o interesse pela coisa. Falam que tudo começou por pequenas rixas, desentendimentos entre o pessoal do major Manoel, que morava no sítio Ipiranga, e gente de Santana protegida do coronel Felinto. E contam também de uma mesquinhez. A peleja teria sido lançada ainda mais cedo, em 1911. Quando o governador do Ceará visitou o casarão recém-inaugurado, que saíra dali fascinado de um banquete, regado a vinho português e carne de faisão no prato principal. A notícia de que ninguém da região daria tamanha acolhida se espalhou e teria gerado ódio e ciúme nas fuças do major. Foi a gota.

Depois disso, morreram muitos. O historiador Raimundo Sandro Cidrão, morador de Santana, relata que até o último fogo, em janeiro de 1927, esquartejavam, degolavam, acuavam. Grávidas davam à luz no terror, o "couro das costas" era arrancado, o crânio partido a marreta, carne humana dada aos cães, valas comuns para os adversários ou mesmo para os amigos mortos não mais reconhecidos depois da carnificina. Até imagens sacras eram crivadas de balas.

Manoel nunca assumiu o poder de Santana. Porém, quando tudo já parecia acalmado da guerra dos dois, mandou matar Felinto traiçoeiramente. Na tarde de 29 de março de 1936, dia de eleições municipais, quando o coronel tentaria sua sexta indicação ao comando da cidade. O mandante do crime saiu fugido, desistiu da matança e foi morar em Juazeiro do Norte, onde morreu anos depois de morte natural. Mas lá imperava "a lei do mais forte", o poder na marra. E tudo isso foi só há algumas décadas.

Ao passar por Santana do Cariri hoje, não dá para imaginar a cidade sob aquela brutalidade. O casarão neoclássico do coronel Felinto Cruz é o principal símbolo daquele tempo, preservado e transformado num museu que agora descreve parte desse passado. Santana nem era povoada até meados do século XVIII. Era terra de andança dos buxixés, índios nômades que se abancavam perto do rio Cariús. Já foi Santana do Brejo Grande, Santana do Araripe, Santana do Cariry (antes com y no final), Santanópole e voltou ao nome Santana do Cariri.

Há uma história ainda mais anterior, de alguns milhões de anos. A região também já foi vale de dinos e pterossauros, lagartos, peixes e crocodilos. Lá está a maior jazida fossilífera do Brasil, de 100 milhões de anos. Muitos desses fósseis foram arrancados e traficados por vários anos. Hoje o que se destaca é a bandinha de música, o casario, a festa de Nossa Senhora Santana, o estudo científico no Geopark do Araripe, o maneiro-pau, a dança de São Gonçalo, a lembrança dos engenhos de alfenins, rapaduras e batidas, o Pontal de Santa Cruz. Uma riqueza agora partilhada sem atritos de morte nem crimes.

Notinhas - Santana do Cariri

- Luiz Tomaz Sobrinho mora quase ao lado do Pontal de Santa Cruz. Fez um pomar, embelezou com pedras pintadas e quer plantar caju lá. A casa é simples, mas chama atenção a cerca de 50 metros dela uma grande estátua do Padre Cícero. De aproximadamente um metro. Ornada com flores e velas. Só para ele, a mulher e a enteada adorarem o Padim. Se Luiz se vale da fé para brotar seu roçado e pedir saúde. "Já fui desenganado, iam cortar minha perna por causa de uma espinhada. Tô bonzinho". E o lugar mais bonito.

- A lenda é que a cruz do Pontal foi botada lá para afastar demônios. A mando do papa. Foi inaugurada justamente no 1º de janeiro de 1901, passagem para o século XX. Há uma cruz de madeira, pequena, já derrubada por raios e recolocada, e uma maior, de ferro, oito metros de altura. Vista para uma paisagem deslumbrante de todo o alto da chapada.

- Ao lado da cruz está a igrejinha de São Bom Jesus das Oliveiras. Singela. É tradição da Igreja Católica montar templos nas colinas para lembrar a pregação de Cristo no horto, antes de sua agonia e ressurreição.

FRASE
"Eu sô fio do Nordeste, não nego meu naturá", Patativa do Assaré, poeta popular

Fonte; Jornal O Povo

Juazeiro do Norte - O vale encantado da salvação


Assim reza a lenda. Porque rezar é da fé cristã e lenda é por onde os índios também creem. Diziam os índios Kariris que onde hoje está Juazeiro do Norte já houve mar ou ele está apenas guardado debaixo do chão massapê, mole e fértil para o roçado. Por que não acreditar, se estão aí a ciência e os olhos a comprovar, pelos peixes petrificados e fossilizados, pelo relevo de Chapada indicando outros tempos líticos do vale, ou pela própria lenda?. Teriam sido os invasores que sumiram com o mar, dominadores estrangeiros que dizimaram o povo índio em outros tempos.

Pois os Kariris acreditavam nesse mar e numa serpente que vivia nele. Uma deusa deles. Falavam ainda os índios que um dia a Pedra da Batateira - outro marco desse mundo fantástico - se soltará por causa da deusa serpente e haverá uma grande inundação na região. Um dilúvio no Cariri. Os maus (os invasores) morrerão e os índios voltarão a viver em paz no paraíso que é o mundo Cariri.

Aí a lenda mudou. Contam os romeiros que foi o padrinho deles, o Padim, o Patriarca do Sertão, o padre Cícero Romão Batista, que conseguiu acorrentar a Pedra da Batateira sob a proteção de Nossa Senhora Mãe do Belo Amor. Que a santa, oferecida por missionários aos índios como devoção nos tempos da colonização, estaria segurando a pedra e o dilúvio a pedido do Padim Ciço. E então a terra do Cariri se fez um lugar de salvação, chão santo. O romeiro, herdeiro do índio nordestino, teve medo da grande inundação. E se salvará quem estiver no alto da serra do Catolé, que é o nome antigo da colina do Horto, onde está agora a estátua do Padre Cícero. O relevo da região tem 1,5 bilhão de anos, tão anterior a nós quanto a lenda. O conto dos índios misturou-se com a história de Noé, do Antigo Testamento, e deu em Padre Cícero.

E desde então, a partir da fantasia mítica dos Kariris, junta gente nas romarias para ir agradecer a Cícero, o padre que querem santo. É assim que a pesquisadora belga Anne Dumoulin, que estuda a Psicologia da Religião, conta o que aprendeu e ainda descobre da história de Juazeiro do Norte. Depois de 34 anos morando na cidade, Anne virou irmã Annete, voluntária da Pastoral das Romarias, que se fascina ao ver 2,5 milhões de romeiros por ano numa cidade. Lugar que tinha apenas 30 casas e uma capelinha (Nossa Senhora das Dores, hoje basílica) quando o jovem padre Cícero chegou vindo do Crato e não mais largou.

Não é possível dizer se o desfecho da lenda dos Kariris aconteceu ou acontecerá um dia na Grande Nação do Povo Cariri, que hoje emenda Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e quem mais chegue à Nação Romeira. Se o mar vai virar deserto e o deserto afundará, como cantarolava Luiz Gonzaga, outro tradutor das causas sertanejas. É pelo menos um ponto de partida para entender tudo ali.

Irmã Annete prefere afirmar que, mesmo antes de toda a influência do Padre Cícero, o Cariri já é por si só um espaço mítico, mágico, sagrado, encantado, de mistérios e certezas. E não são lendas mortas, ainda perduram, se sustentam. Ela pede que não considere mito como algo pejorativo, mas da construção de um povo. "Aqui é um vale fértil no meio do Nordeste. E isso facilitou a crença, o desenvolvimento de uma mística no Interior". Existem os povos Maias, Astecas, Incas, assim como existe o povo Kariri.

Juazeiro do Norte é então a capital da Nação Romeira Cariri. Cícero virou o padrinho, entrou na família, a imagem é a primeira que adorna e protege a sala da casa. É a raiz dessa cultura. Virou pajé, conselheiro. É o nome escolhido para o filho, a filha, nome de borracharia, de hotel, lanchonete, avenida, fazenda, salão de beleza, farmácia, padaria, a Cicerópolis. Ainda não é nome de igreja, mas já é padroeiro.

O filho cratense de seu Joaquim Romão e dona Quinô fez da Juazeiro a terra onde a Igreja Católica Apostólica Romana ficou mais brasileira, popular. Deu progresso e deu oração. Diz o padre José Venturelli, italiano, administrador do Horto que "Deus realizou uma emoção religiosa tão forte na região que podemos dizer que Padre Cícero foi o maior evangelizador do Nordeste". Em Juazeiro está-se mais perto do céu, da Mãe das Dores e da salvação econômica.

Hoje também já se vai à cidade em busca de outro saber além do espiritual. Há faculdades, centro tecnológicos, fábricas, empregos. "Juazeiro agora está mudando. A atual é uma Juazeiro universitária. Há bairros só de professores e estudantes, que não vêm pelas romarias ". Não é bom, não é ruim, é uma nova realidade.

Conta irmã Annete: "Vocês querem entender como é a autoestima desse povo? Alguém me contou a história de um romeiro de Recife, que tinha um carrinho e um carrão grande bateu no carro dele. E o homem foi logo falando: "Você não sabe dirigir, como é que pode?". E o do Fusca disse "mas a culpa é do senhor, o senhor que bateu no meu carro. Não fiz nada". Aí o do carro grande falou "O senhor não sabe com quem está falando? Eu sou fulano". E o rapaz do Fusca respondeu: "O senhor é que não sabe com quem está falando. Eu sou afilhado do meu padim Ciço". Tem também a história da mulher que disse "Eu não sou ninguém, mas com ele, Padre Cícero, eu sou alguém". É a dignidade que ninguém dá.

NOTINHAS SOBRE JUAZEIRO

- O único roçado ao lado do Horto e da estátua do Padre Cícero é de seu Nobrelino de Freitas Marques, 74. Tem a bênção e o trabalho. Planta milho, feijão, melancia, gerimum. Aproveita a primeira chuva do Ceará, que sempre cai antes no Cariri. Colhe antes de todos. Pai de sete filhos, um deles autodidata que faz avião e helicóptero de madeira. Oração é em casa. Ensina: "a reza só voga se o cabra rezar com sentido em Deus". E diz sua fé: "Enquanto vida tiver, eu trabalho na minha terrinha".

- Qual o caminho do romeiro, logo que chega a Juazeiro? Vão à igreja de São Francisco. O costume é dar três voltas na estátua do Padim no centro do templo. É a saudação da chegada à romaria; b) Vão se instalar nos ranchos; c) Outro costume, na madrugada seguinte vão para o Horto. Por 6 km de trilha, chegam ao Santo Sepulcro, onde se penitenciam entre pedras, grutas e na capelinha. d) Depois, às cinco, visitam o casarão, Museu Vivo do Padim e a capela do local. e) À tarde, vão para as outras igrejas e gastam no comércio. f) No dia da ida, dão mais três voltas na imagem da igreja de São Francisco, para proteção da viagem.

"O que eu mais gosto em Juazeiro é do meu Padim Ciço"
(Joaquim Santos Rodrigues, "Seu Lunga", comerciante)

Fonte: Jornal O Povo

Icó - A cidade das lendas


"No século XIX, o Barão do Crato (Bernardo Duarte Brandão) era um dos homens mais poderosos de Icó. Dizem que ele era muito orgulhoso, não gostava de se misturar com a população. Por isso, teria mandado construir um túnel de seu casarão até o teatro municipal (construído em 1860). Assim, poderia assistir aos espetáculos sem ter que passar pelas pessoas". A lenda, contada pelo historiador Afonso Medeiros, é apenas uma entre centenas de histórias conhecidas pela população de Icó, no Centro-Sul do Estado.

Os moradores mais antigos garantem que, na igreja do Senhor do Bonfim - uma das oito igrejas de Icó - existe uma baleia adormecida no altar-mor da capela. Se a imagem do Senhor do Bonfim for retirada, começará a jorrar água do altar e toda Icó será inundada. "É o que dizem. Eu é que não tenho coragem de retirá-lo (o santo) de lá", diverte-se o aposentado Francisco Teotônio dos Santos, 71.

O Teatro Municipal Ribeira dos Icós rendeu uma das histórias mais curiosas do município. Construído em 1860, o teatro só foi ser inaugurado oficialmente em uma solenidade realizada no dia 11 de janeiro de 2006. "No dia da inauguração, em 1860, nenhum dos senhores queria ser o primeiro a chegar ao teatro. Eles mandavam seus escravos verem se já havia chegado alguém. E, nesse vai-e-vem todo, a noite terminou e o teatro não foi inaugurado. Mas isso é lenda (risos)", diz o historiador Afonso Medeiros. "Quem inventou essa história foi o pessoal de Aracati, já que havia uma rixa entre as duas cidades", completa.

A fama de "cidade das lendas" virou até livro no município. "Icó: Suas Histórias, Nossas Lembranças", de autoria do escritor e agrônomo Chiquinho Peixoto, 63, reúne quase duas centenas de "causos" sobre Icó e seus moradores. "Os personagens são gente simples do povo que, com suas peculiares formas de comportamento, associam o respeitoso ao irreverente, o sério ao jocoso, a ingenuidade à esperteza e até o trágico ao cômico", afirma o autor do livro.


Notas sobre Icó

- O cearense Antônio Pinto Nogueira Accioly, um dos mais influentes políticos do início do século XX, é um dos filhos ilustres de Icó. A casa onde ele nasceu, no centro da cidade, está sendo restaurada e funcionará como sede da Prefeitura. O escritor e político Heráclito Graça, que ocupou a cadeira 30 da Academia Brasileira de Letras (ABL), também nasceu no município.

- O distrito de Lima Campos, localizado a 10 quilômetros da sede do município, é famoso pelas peixadas servidas aos visitantes. Os restaurantes, todos caseiros, estão localizados às margens do açude de Lima Campos e servem tilápias, tucunarés, traíras, entre outros tipos de peixes. No pólo gastronômico, o cliente tem a opção de escolher o prato com peixes fritos, assados ou cozidos.

- O município de Icó é famoso também pela grande quantidade de igrejas espalhadas pela cidade. São quatro no total, todas tombadas pelo Iphan. Uma delas, a Nossa Senhora do Rosário, foi construída pelos escravos em 1828. Por isso, ficou conhecida como a Igreja dos Escravos, pois era a única da cidade que eles eram autorizados a frequentar. Ao todo, Icó tem 13 construções tombadas.

- A festa do Senhor do Bonfim, realizada sempre no dia 1º de janeiro, é considerada a terceira maior festa religiosa do estado do Ceará. Segundo a Secretaria da Cultura do Município, os festejos reuniram cerca de 100 mil pessoas em 2009. "São 15 minutos de fogos espalhados pela praça toda, que tem 966 metros de comprimento", garante o historiador Afonso Medeiros.

"Seguramente, eu tenho o Ceará dentro de mim". José Wilker, ator.

Fonte: Jornal O Povo

Aracati - É permitido exagerar


Há mais de 10 anos o ritual se repete. Sempre às quartas-feiras de cinzas, a partir do meio-dia, um grupo de foliões arma concentração na Praça da Coluna e prepara a despedida do Carnaval de Aracati. De lá, o Bloco dos Loucos, como é conhecido, segue pelas ruas da cidade em um arrastão até a rodoviária encerrando a festa. À frente da animação, Marcos Diniz, 41, o atual presidente do bloco.

Marcão dos Loucos é um dos símbolos da alegria e irreverência que marcam o Carnaval de Aracati. Filho da cidade, sofreu uma queda de motocicleta em 1981. Desde então perdeu o movimento das pernas, mas não a vontade de viver. Por onde anda é rodeado de gente, alegre e animado. "O acidente fez aumentar a minha autoestima. Hoje ajudo idosos e cadeirantes como se fosse missão".

Marcão dos Loucos é a própria personificação do Carnaval, em uma cidade que tem na festa um dos seus maiores orgulhos. Este ano, exagero ou não, a Prefeitura anunciou a presença de 600 mil pessoas. Para um município com 69 mil habitantes o número pode parecer exagerado. Mas dizer isso a um aracatiense é quase desaforo. Nas ruas, não há discussão: o Carnaval de Aracati é o melhor do Ceará.

A certeza é tanta sobre a importância do Carnaval para a cidade que a comunidade se engaja e respira a festa muito antes da data oficial. Este ano mesmo, a animação teve início uma semana antes com atrações nas praias. Outra novidade foram os maracatus vindos de Fortaleza. Na Praça da Coluna, que já virou praça dos loucos, o Carnaval tem calendário anual, que vai da escolha das marchinhas à eleição para a presidência do bloco. Marchinhas que são escolhidas a partir de fatos que tratam das coisas da cidade ou fatos pitorescos envolvendo seus personagens.

Mas Aracati não é só Carnaval. É história, tradição, memória e uma riqueza de patrimônio material e imaterial. É preciso um olhar para tudo isso para entender possíveis exageros de seu povo. Com rico conjunto arquitetônico tombado em 2000 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico (Iphan), a cidade atrai pela beleza de suas ruas e casas, demarcando sua importância histórica e cultural além fronteiras.

Historicamente, a cidade começou a ser ocupada por volta de 1740 com o aparecimento das charqueadas (abate e conservação da carne), responsáveis por possibilitar a competitividade da pecuária no Estado, em contraponto aos privilégios da cultura canavieira da Zona da Mata pernambucana. Com o comércio da carne e do couro foram atraídos ricos comerciantes de vários locais para a região, o que manteve, por muito tempo, Aracati como a maior área de influência econômica, social e política do povo cearense.

Do ciclo do gado, no século XVIII, a cidade passou pelo comercial e o do algodão (século XIX), e o industrial (século XX), que lhe deixaram marcas profundas, como as centenárias igrejas e os imóveis que registram passagens da história. Se não bastasse, ficam em Aracati as praias de Canoa Quebrada, Majorlândia e Quixabá, para citar apenas as mais conhecidas internacionalmente. Dizem ainda que as primeiras terras descobertas no Brasil pelo navegador espanhol Vicente Pinzón situam-se no litoral do município.

Em Aracati, portanto, seja na história, na alegria, na riqueza cultural ou nas belezas naturais, vale a hipérbole. Seu povo pode exagerar quando se refere ao locus, afinal estão presentes os elementos que controem o que nominamos de autoestima.

Fonte: Jornal O Povo

Sobral - Sem o becco não se vive


O sol de Sobral não esfria fácil. Nem na sombra, não é lenda. Um mormaço enseba o rosto e a murrinha faz cangalha nos ombros e pia os pés de quem não está acostumado com o abafado que se demora por uma tarde inteira. Sobral não se incomoda de também ser assim. E causa espanto ver que as xicarazinhas de café quente do Café Jaibaras, um dos dois arcos de entrada do Becco do Cotovelo, não param de ser servidas pela simpatia de dona Expedita e seus 30 anos de pés de balcão. É ela que me oferece um preto pegando fogo, enquanto recolhe as vasilhas sobejadas. Balanço o indicador em riste, feito rabo fino de vira-lata sedento, e provo por sugestão do outro repórter um geladíssimo guaraná Del Rio. Ao preço de 60 centavos, cheiro e gosto de tutti frutti e infância, a invenção sobralense é um refresco. Imbatível. Por lá, chega a vender mais do que Coca-Cola.

Estamos no freje de Sobral, no Becco torto (por isso Cotovelo) mais frequentado que se tem notícia na região norte do Ceará. Encruzilhada inevitável por onde passa gente de toda laia: sobralenses ou viajantes, bacanas ou desprovidos, desocupados e compromissados. Seu Expedito Vasconcelos, 65, dono do Café Jaibaras há 30 anos (o estabelecimento já fez 55), dá notícia de Fernando Henrique Cardoso, Adísia Sá, Fernando Collor de Melo, Leonel Brizola, Ciro Gomes, dom Aldo Pagotto, Cid Gomes, Ary Sherlock, Rachel de Queiroz e outros. Já tomaram café servido por dona Expedita e deixaram a prova por escrito.

Para que o Becco nunca deixe de ser perene na memória, quem é "ilustre" e passa por lá é convidado a deixar recado e autógrafo em um livro que se propõem a ser parte da história do lugar em qualquer tempo. Inventado há 15 anos, FHC foi o primeiro a rubricá-lo. Por falar em "celebridades", Expedito Vasconcelos - eleito pela troça como "prefeito do Becco" - avisa que vai inaugurar uma "parede da fama" no Café Jaibaras. "Pés na Hollywood, mãos na Princesa do Norte", faz piada.

Porém a história dos mais de 150 anos do Becco do Cotovelo - seu surgimento é do fim do século XVIII, vai além dos visitantes efêmeros e é tramada por uma vastidão de universos que encarna o espírito de uma autoestima sobralense desmedida. Transborda os limites de seus 100 metros de tamanho e subjetividade.

O beco pode até ter nascido "engembrado", sem alinhamento, com a única serventia de ligar a Rua Velha do Rosário do povoamento da antiga Caiçara - primeiro nome de Sobral - à Rua Nova do Rosário. Mas hoje, entre a atual coronel José Sabóia e a coronel Ernesto Deocleciano há um entreposto etnográfico onde Sobral se refaz "passagem e permanência" segundo o olhar do pesquisador Gilmar de Carvalho (UFC), mestre, doutor e pós-doutor na investigação da diversidade cultural.

Sim, se para lá vão os políticos com o intuito de serem vistos e propagados por Sobral inteira, no Becco os próprios anônimos editam o fluxo das notícias políticas, futebolísticas, cotidianas e das maledicências sobre a vida alheia que dali correm pela cidade dividida - geográfica e socialmente - pelas ribeiras do Acaraú.

O factual ou boato surge de uma hora pra outra em meio à polifonia do burburinho. No pregão zoadento de quem está vendendo bugigangas ou no momento de fazer uma fezinha com seu Danrley, cambista do Becco há 40 anos. De lá, pode passar pelo vão apertado do mestre em consertar relógios de ponteiros Elias Felix Rocha, 87 anos, 66 de Cotovelo e fervilhar na banca de revistas pornôs de Felizardo Alves Figueiredo. Desletrado desde que nasceu há 75 anos, ele repete que reza por noites curtas e fins de semana breves na ânsia de "tornar", madrugador, ao redemoinho do Becco da velha Caiçara. "Sobral não é Sobral sem isso aqui".


CAMBISTA POETA
Danrlei, o cambista mais antigo do Becco do Cotovelo, é na verdade Raimundo Arruda de Sousa. Nem ele sabe por que ganhou esse segundo nome. Perto de fazer 74 anos, 40 frequentando o Becco de domingo a domingo, Danrlei já foi cantor de escola de samba, crooner de pé-de-serra, cordelista e jogador juvenil do Calouros do Ar.

BOCA NO BECCO
"Tá na boca do Becco,
Feliz ou infeliz de quem cair,
Se fala aqui de todo mundo.
E em um segundo
Você pode até crescer ou decrescer.
Cuidado com a escorregadinha.
Qualquer coisinha
Não tem apelo.
Vai cair
No Becco do Cotovelo
Time campeão
Tá na boca do Becco.
Quem ganha a eleição
Tá na boca do Becco.
Quem é ou foi ladrão
Tá na boca do Becco.
Corno, gay ou sapatão
Tá na boca do Becco".
(Danrlei Cambista)

ALGO DÃO
O Becco do Cotovelo foi cenário da instalação/site specific e vídeo "Algo dão", em 2005, da artista paulista Bia Cordovil. Duzentos quilos de algodão hidrófilo deram outro uso ao espaço do epicentro de Sobral. Novelos rolaram do museu Dom José Tupinambá da Frota interferiram no cotidiano do beco. Fale com artista pelo email: biacordovil@yahoo.com.br

DICA DE LIVRO
Cafezinho a R$ 0,50 é a especialidade do Café Jaibaras. Mas lá também, o freguês pode comprar por R$ 30,00 a 3ª edição do livro História de Sobral. Um clássico lançado, em 1952, por dom José Tupinambá da Frota, primeiro bispo da diocese de Sobral. A obra é um documento de 629 páginas sobre a origem da Caiçara e fatos históricos do Ceará.

GUARANY DE SOBRAL
Em uma das paredes do Flora Café, na esquina da Coronel Ernesto Deocleciano, estão expostas camisas rubronegras. Do Flamengo? Nem pensar, quem canta de galo em Sobral é o Guarany. Equipe do baixinho Clodoado, ídolo do time de Luiz Torquato, também proprietário do Flora Café.

TEORIA DA RELATIVIDADE
Foi pelo Sol de Sobral que se comprovou a Teoria da Relatividade. Dia 29 de maio próximo, será o 90º ano em que a cidade foi visitada por uma expedição científica, dos pesquisadores Charles Davidson e Andrew Crommelin, a mando de Albert Einstein. Com fotos de um eclipse naquela data, registraram a reflexão da luz nas proximidades do sol. Sobral tem o Museu do Eclipse para registrar a importância que a cidade teve para o novo entendimento do universo.

FRASE
"O problema concebido pelo meu cérebro, incumbiu-se de resolvê-lo o luminoso céu do Brasil." (Albert Einstein, cientista, após comprovar a Teoria da Relatividade a partir de Sobral-Ceará)

Fonte: Jornal O Povo

domingo, 8 de março de 2009

Histórias e causos do Barão de Aquiraz


Localizado no distrito de Genezaré, em Assaré, o casarão do Barão de Aquiraz sofre com a falta de conservação. Construção de meados do século XIX, a casa foi erguida por mão de obra escrava, com material extraído da própria região. Hoje se encontra desabitada e sem uso, mas, para os moradores daquela localidade, é um verdadeiro baú de histórias fantásticas. Por vezes, é o Barão que surge como figura cruel, cometendo atos de perversidade com os escravos; em outros momentos, é o fantasma, que indica onde estão escondidas as botijas que deixou; além de histórias de quem se aventurou a ir até lá ou passar uma noite sob o teto da velha casa.


Detalhes do casarão do Barão de Aquiraz, em Assaré: cenário das histórias do município e de contos do imaginário da região (Foto: Thiago Gaspar)






Envolto em lendas, o casarão do Barão de Aquiraz sofre com falta de conservação

Gonçalo Baptista Vieira (1819 - 1896) foi um homem marcado pelas contradições do tempo em que viveu. Grande senhor de terras, foi uma das lideranças políticas do Ceará monarquista; opositor da república, era simpatizante dos abolicionistas; investiu em ferrovias que cortavam o Estado; e recebeu de Dom Pedro II o título de Barão de Aquiraz.

Mais de 100 anos após a sua morte, o Barão de Aquiraz é uma figura pouco conhecida na História do Ceará. Em Assaré, município onde manteve uma fazenda, é lembrado como um personagem bem distinta daquela que os historiadores esboçam. De líder político e empreendedor, o Barão se converteu em personagem fantástico no imaginário do povo.

Apesar da falta de conservação e do desgaste natural, o casarão da fazenda que pertenceu ao Barão de Aquiraz, na localidade de Infincado, alimenta as histórias em torno de seu antigo dono. Histórias de assombração, de fortunas enterradas, protegidas por artifícios mágicos, além de “causos” a respeito da própria crueldade do velho Barão. Na cidade, a casa grande do Barão de Aquiraz e os causos são bastante conhecidos. No entanto, um número muito pequeno teve a oportunidade de vê-la de perto. “Ela fica muito longe. A estrada pra lá é ruim, além de não ter nada. É só mato”, conta o comerciante João Palácio.

O real e o fantástico

A localidade de Infincado fica em Genezaré, distrito de Assaré, distante 24 km da sede do município. O terreno acidentado, da estrada carroçável, estende o tempo de viagem, chegando a duas horas de carro. Quando se chega em Genezaré, é preciso atravessar a área povoada, com casas, praça e capela própria. Segue-se outros 10 km até chegar ao casarão.

Casa e personagem são protagonistas e coadjuvantes de histórias fantásticas. O cenário é mesmo, mas mudam os tempos - indo de causos de quando o Barão de Aquiraz era vivo ao tempo presente, quando este sobrevive como vestígio.

Douglas Nogueira e Erisberto Gonçalves, da Associação de Jovens de Genezaré, pesquisaram sobre a história da casa e colecionaram causos. No campo da história, os dois jovens falam de um rico senhor de terras, que em seu auge financeiro, teve propriedades em Campo Sales, Potengi, Araripe e para além dos limites do Estado, em Pernambuco e no Piauí. Construído em meados do século XIX (não há uma data precisa de sua fundação), o casarão é robusto, com 72 portas, com paredes largas e estruturas em cedro. Foi erguida pelos escravos da propriedade, que moldavam as telhas nas próprias pernas.

No campo do imaginário, mantido por narrativas que passam de geração à geração, o lugar foi palco de cenas de crueldade. “Os moradores mais antigos de Genezaré contam que o Barão era um homem muito perverso. Certa vez teria feito um escravo carregar uma pedra enorme, de um córrego há quilômetros da casa. Quando ele chegou lá, caiu morto, com a pedra por cima”, conta Douglas Nogueira.

O temperamento cruel do fazendeiro reaparece quando se conta dos escravos que mandou matar. “Era um casal de negros, que tinham um caso. O Barão, que era apaixonado por ela, ficou louco quando soube e pôs fim a vida deles. Depois disso, o povo conta, que ele passou a ser assombrado pela alma dos escravos. Ouvia correntes sendo arrastadas, as redes da casa eram sacudidas. Ainda hoje tem quem diga que você ouve essas correntes à noite”, narra Erisberto Gonçalves.

Curioso a descrição da crueldade do Barão para com seus escravos. A história o registrou como simpatizante do abolicionismo. Em março de 1883, antes da abolição da escravidão no Ceará, o proprietário teria dado a carta de liberdade para seus cativos.

O descompasso entre a história oficial e aquela que a tradição oral mantém viva. Não há necessidade de comprovação, mas do funcionamento de uma narrativa, que acaba por reproduzir o imaginário e os valores de uma comunidade.

Caso emblemático é o de uma narrativa sobre a morte do Barão de Aquiraz. É Douglas Nogueira quem a reproduz: “quando ele morreu, o corpo saiu da sede da fazendo, em cortejo, com familiares e escravos da propriedade. No meio do caminho, a família encontrou dois escravos, que pediram para carregar a rede, sob ordem do cemitério. Eles partiram na frente e a família os perdeu de vista, quando encontrou foi só a rede e as madeiras. Nenhum sinal do corpo ou dos homens que iam carregando ele”. A história contradiz o que ficou registrado nos documentos do morto. Falecido em 1896, já não existiam escravos à época; e o Barão de Aquiraz morreu em sua propriedade na Capital, precisamente onde hoje se encontra o Cine São Luiz.

Outras histórias dão conta de aparições do fantasma do Barão, que indicaria onde estão escondidas botijas, dentro e fora da casa. Estas seriam protegidas por uma cobra, que ameaça devorar quem escavar no lugar errado.

Restauro

O estado físico da casa inspira preocupação. Ainda que careça do refinamento de outras construções da época, o casarão de Infincado ajuda a reconstituir o cotidiano de outros tempos. Basta observar o quarto usado como oficina de tear, o suporte para candeias e o piso, de terra batida em alguns cômodos, de tijolos, em outros.

De acordo com Marcos Salmo, secretário de Cultura de Assaré, a prefeitura tem planos para restaurar a casa. “Já tivemos conversas com a Secretaria da Cultura do Estado, para agendar um visita e fazer o levantamento técnico da construção”, explica.

A idéia é que este trabalho seja feito em Abril. “Inicialmente, vamos fazer um levantamento para fazer tombamento por lei municipal e, posteriormente, trabalhar na captação de recurso para fazer restauro”, detalha o secretário do município. Salmo garante que os cuidados com patrimônio material e imaterial são prioridades da secretaria.

Dellano Rios
Enviado a Assaré

Fonte: Jornal Diário do Nordeste

ARTE BRUTA DO CARIRI - Mostra do imaginário popular


Mateu, personagem do reisado, é presença de destaque diante da alegria que transmite (Foto: Elizângela Santos)


Figura do príncipe Ribamar, o poético insano, também está na exposição. Uma homenagem a um personagem quase que totalmente esquecido

São flandeiros, uma arte quase em extinção na região do Cariri, e os xilógrafos de Juazeiro que ganham espaço

Juazeiro do Norte. A arte pura do Cariri em exposição. Com o título “Genuinamente arte, arte bruta do Cariri”, estão expostos diversos trabalhos de artistas da região no Centro Cultural Banco do Nordeste, neste município. São artistas pouco divulgados, mas que agora têm um olhar lançado sobre a arte determinantemente de uma região que envolve um contexto amplo de criatividade artística. Durante a exposição, a homenagem especial é voltada para o príncipe Ribamar da Beira Fresca. Um visionário, considerado louco, ou um louco visionário. José Gomes Menezes se intitulou dessa maneira, poético como ele. Já teve sua forma de ver o mundo descrita pelo ator juazeirense, José Wilker.

O professor Titus Riedl, um dos organizadores da exposição, diz que a meta é levar ao público, até abril, um trabalho de artistas que estão fora da rota do mercado, em que outros artistas da região já estão inseridos. São flandeiros, uma arte quase em extinção na região, e os xilógrafos de Juazeiro que ganham espaço. Um espaço de anjos, floristas, escultores. O Mateu, um personagem do reisado, é uma presença importante e imponente diante da alegria que transmite.

Uma festa tradicional em Juazeiro e que ainda sobrevive ao tempo. Nas áreas das periferias da cidade há quem resgate a tradição de render a fé a São Lázaro, protetor dos cães. São servidas refeições, num grande festejo, a esses animais. Todos se servem num grande banquete preparado especificamente para os mais abandonados. São os vira-latas que têm vez principalmente. Ao meio-dia o almoço é servido, não só para os cães, mas gente também faz parte da comilança.

O personagem de Príncipe apaixonado por Gioconda, de Da Vinci, rodou as ruas de Juazeiro à espera de sua amada, que iria atravessar o Atlântico. Construiu o aeroporto, firmou tratado de paz, com projetos infindáveis, fez nascer das suas imaginações esquizofrênica fábricas de desentortar bananas ou até de fumaça. O homem, de profissão carpinteiro, surtou após a perda da irmã e da mãe. Bem vestido como ele só, o ar solene, e a foto da amada, o noivo prometia a chegada do amor à sua terra. Sempre brincavam com ele, era motivo de risos e chacotas.

De tanto atormentarem e cobrarem a chegada da noiva Gioconda, sempre levada nas mãos, para mostrar ao público a cara de sua futura esposa, o Príncipe Ribamar, sempre altivo, com sua pasta cheia de projetos e diplomas, cartas imaginárias e dinheiro falso, decidiu que ela não viria mais de navio. Uma viagem demorada demais. Seria mesmo de avião.

Ele tinha todos os comprovantes da viagem. Mas, como chegar a Juazeiro sem um aeroporto. Isso não era problema para Ribamar, com roupas cheias de medalhas, guarda-chuva branco, que sempre aparecia de lugar nenhum e partia para nenhum lugar, como bem descreve Wilker, que conheceu pessoalmente o homem insano e poético que percorria as ruas da terra do “Padim” nos anos 50 e 60. Juntou equipe que passou a trabalhar de forma acelerada para o pouso imaginário. E foi no mesmo local onde hoje está construído o Aeroporto Orlando Bezerra de Menezes. Por justiça, diz o ator José Wilker em seu texto, o mais poético e que traduz a personagem de Beira Fresca, o nome do aeroporto deveria ser Príncipe Ribamar da Beira Fresca.

Titus Riedl classifica o Príncipe Ribamar como o personagem mais rico de Juazeiro. Está no esquecimento. O visitante assíduo do Banco do Brasil chegou até a ser homenageado com nome de rua. “Não deixou marcas e nem é lembrado, por isso a homenagem poética da exposição”, diz ele.

O trabalho pode ser uma forma de também chamar a atenção para o abandono social de pessoas que sofrem de algum problema mental, que não têm um acompanhamento.

Elizângela Santos
Repórter

Fonte: Jornal Diário do Nordeste

HISTÓRIA E CULTURA - Vale do Jaguaribe em artigos.


Pôr-do-sol: Paisagem relembra a época de ouro da região, quando a economia estava solidificada com o comércio de cera de carnaúba (Foto: Melquíades Júnior)

Historiadores da Fac. de Filosofia Dom Aureliano Matos lançam ´Vale do Jaguaribe - histórias e culturas´

Limoeiro do Norte. Um dia, guiados pelo Rio Jaguaribe, os invasores colonizadores encontraram os índios, as onças, e fincaram os pés no Vale do Jaguaribe, o primeiro ponto da ocupação no Ceará. Séculos depois da “descoberta”, impulsionados pela curiosidade e a impertinente busca de conhecimento, historiadores por formação encontram papéis velhos, mofados, empoeirados, mas também elementos vivos da memória, das histórias e tradições locais. Numa prova de que a história é passado, mas presente; particípio, mas gerúndio, aguça-se a sensibilidade e estuda-se a própria realidade, já que presente prevê o futuro.

Retratos da realidade do Vale do Jaguaribe e, ao mesmo tempo, recortes universais da humanidade estão grafados em “Vale do Jaguaribe – histórias e culturas”. Não é só um apanhado de artigos acadêmicos, mas a chama da resistência, no Interior, do registro do conhecimento. Apesar de o Cariri ser, emblematicamente, o que primeiro vem à mente de um leigo quando o assunto é Interior deste Estado da Nação, foi na região jaguaribana que teve início a incursão “civilizatória” propriamente dita no Ceará.

Início para uns e fim para outros – os naturais donos, diga-se, já que os índios foram expulsos e dizimados justo no período de sua grande resistência à colonização, na famosa Guerra dos Bárbaros. O Jaguaribe (do tupi: Rio das Onças), virado em mar de sangue, ficou sem onça, índio e até sem água – não fosse perenizado pelos açudes ainda seria “o maior rio seco do mundo”.

Mas outros povos assumiram o lugar, e a partir de quando se fez registro escrito, de vida ou de morte, têm-se aí o alvo dos graduandos do curso de História da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos, unidade descentralizada da Universidade Estadual do Ceará (Uece), em Limoeiro do Norte. Eles são os autores do livro.

Sertão e cidade

Se for considerado do ponto de vista histórico e social, o livro é sobre o Vale do Jaguaribe, mas geograficamente do que se fala é o Baixo Jaguaribe, especialmente Limoeiro do Norte – locos de dez dos 16 artigos que compõem o livro, que está dividido em quatro partes: Sertão, cultura e trabalho; Cidade, cultura, poder e religiosidade; Campo e cidade – as doenças não têm fronteiras; e Escravidão e ciganos - um olhar histórico-antropológico. Quem já cortou o Ceará de norte a sul e viu que, no meio do caminho tem carnaubal, talvez não saiba que, no meio do curso da história, entre os séculos XIX e XX, o extrativismo desse vegetal colocou a região jaguaribana no mercado internacional. O Ciclo da Cera de Carnaúba, de que fala o professor Olivenor Chaves, organizador do livro. Já dizia padre Antônio Thomaz que “tudo, na carnaubeira, é prestante e amigo. Nenhuma árvore é mais dadivosa e fecunda”, bem sabiam disso que os ribeirinhos de várzea do Jaguaribe faziam riqueza do pó da cera e da palha. No município de Palhano, uma família artesã inteira aproveita a noite enluarada para os serões de trança de palha de carnaúba, a feitura de bolsas e chapéus. O antigo proprietário de carnaubais em Russas, Elias Bento, conta que ganhou tanto dinheiro “que guardava dentro de uma mala, sabe? Comprei casa na cidade pra meus oito filhos. Vamos dizer que eu era rico... A natureza já dava pronta, nem precisava a gente pedir inverno, era como se Deus dissesse: esse povo mora num canto seco, num vão ter o que comer no verão, então-se, eu vou dar a carnaubeira para eles sobreviver, a natureza é muito sábia, tudo que Deus faz é certo, sabia?”, conta.

Obra

Para saber ou lembrar, “Vale do Jaguaribe – histórias e culturas” é uma obra acadêmica destinada à comunidade jaguaribana e aos interessados em conhecer o período de colonização da região. O livro é um encontro de olhares do povo jaguaribano, que escreve e lê, com suas próprias histórias.

De um lado, exercício da pesquisa; de outro, reparo da memória da formação das elites locais e as relações de poder sobre as camadas populares da pirâmide social.

Melquíades Júnior
Colaborador

MESTRE DA CULTURA
Histórias renascem com as relações sociais



Mestre da cultura: Louceria Lúcia Pequeno, destaque no cenário cultural de Limoeiro (Foto: Melquíades Júnior)

Limoeiro do Norte. A publicação de “Vale do Jaguaribe – histórias e culturas” tem um significado novo na historiografia da região jaguaribana, em que pese a predominância de apanhados de memorialistas em outras publicações. Dessa vez são 16 trabalhos científicos, ainda que uma condensação de monografias, e mesmo que tais trabalhos ainda pareçam carecer de dados, mais tempo, mais informações em trabalhos que transcendem à pesquisa histórica, almejam a Sociologia, a Antropologia.

Das relações sociais e econômicas entre famílias de artesãos são feitas as comunidades, as histórias. Curiosidades temperam as relações sociais dos atores jaguaribanos, como as famosas louceiras do Córrego de Areia, em Limoeiro, pesquisadas pela professora doutora Francisca Mendes: “Merece destacar que, aos olhos das louceiras, a lagoa (local de extração do barro) é muito mais do que a extensão de uma terra cheia de escavações. Ela revela caminhos por onde as outras passaram, uma vez que identificam quem esteve antes no local, que quantidade de barro levou e quanto tempo faz, a partir dos sinais deixados nas escavações. Algumas louceiras cobrem os lugares escavados para que as outras não percebam que ali tem um barro de boa qualidade”.

Outras curiosidades a se encontrar no livro: “um escravo de nome Tibúrcio, com idade de deseceis annos, cor mulato, filho de uma escrava minha por nome Joaquina... o alforrio... desde já gosar de sua liberdade... somente impondo a condição de me acompanhar até o fim da minha vida...”. É o trecho de uma carta de alforria na Vila do Espírito Santo, em Morada Nova. Vê-se que o documento pouco valia de quebra de algemas na relação senhor-escravo. Um dos pontos a se destacar da publicação são as centenas de referências bibliográficas.

É preciso concordar com o professor e deputado federal Ariosto Holanda, que escreve o prefácio da obra: o livro representa um significado histórico em si, o encurtamento da distância entre a faculdade e os níveis médio e fundamental de ensino, além da oportunidade de olhar o presente tendo como referência o passado. Ainda diz Ariosto que o material “não deixa de ser um tratado antropológico da região”. Mais do que isso, é uma demonstração de que transbordam em potencial para as ciências humanas os pesquisadores da história – com Geografia, Letras e Pedagogia formam os únicos cursos da área de humanas.

Fundação

Com 40 anos da fundação, a Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos, que não tem curso de Filosofia, carece de cursos como Ciências Sociais e Filosofia; e bacharelado, não somente cursos em licenciatura – motivos para fuga de “cérebros” da região, que não querem enveredar pelo trabalho docente. “Este livro nasceu de um desejo, compartilhado com os bolsistas do Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de História da Fafidam, de reunir os resultados das pesquisas desenvolvidas por bolsistas no referido programa, as quais resultaram em suas monografias de final de curso de graduação em história”.

E completa: “a motivação era darmos visibilidade ao conhecimento histórico produzido por nossos alunos, de modo que uma gama variada de público pudesse ter acesso a cada uma das pesquisas selecionadas para compor essa coletânea”, explica José Olivenor Sousa Chaves, professor doutor do curso de História e organizador do livro, em parceria com os alunos do curso de História da Fafidam.

SAIBA MAIS

Trechos


A seguir, alguns dos trechos da obra, para situar o leitor nos aspectos abordados no livro

Farinhada


´Muito importantes até as décadas de 1970, as casas de farinha representam o lugar da memória, o espaço da saudade, embora ainda seja possível se encontrar em funcionamento, pelo Baixo Jaguaribe´

Ocupação

´A ocupação civilizatória no Vale do Jaguaribe teve início no século XVII, em decorrência da criação de gado, a partir de duas rotas de penetração: uma, vinda de Pernambuco pelo baixo curso do Rio Jaguaribe, e outra, procedente da Bahia, vinda pelo alto curso do rio´

Resgate

´Trabalho de amor num terreiro de umbanda em Limoeiro: ´põe-se em um pirex as fotos das duas pessoas, escreve-se os nomes completos nas velas e as coloca sobre as fotos. Depois é derramado mel dentro do pirex, para inundar de doçura a relação que se pretende levar a efeito. Ao final, borrifa-se perfume´
Fonte: Jornal Diário do Nordeste

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