terça-feira, 30 de setembro de 2008

O livreiro de Stalin

A história de Manoel Raposo Coelho. Livreiro, militante comunista, editor, poeta, compositor, intelectual, escritor e boêmio, Manoel Raposo é um dos últimos símbolos de uma Fortaleza vermelha


Jáder de Carvalho durante noite de autógrafos na Praça do Ferreira: 850 livros vendidos. Ao lado Manoel Raposo em sua casa (Foto: Fco Fontenele)

A noite corria mansa quando Manoel Coelho Raposo pisou na Praça do Ferreira na segunda-feira, 22. Penteou, com os dedos, os cabelos brancos desfeitos pelo vento que passeava sem rumo em volta dele. Metido numa calça cinza, uma camisa esverdeada e um cinto que juntava as peças, atando-as ao corpo franzino e sumido, rodeava o lugar com os olhos.

- A guarita ficava bem aqui, disse encaminhando-se para o lado esquerdo da praça, com passos rápidos e miúdos. - Não havia este calçadão. A (rua) Guilherme Rocha atravessava a praça e do outro lado da rua ficava o Abrigo Central. As mãos indicam o lugar grudado na lembrança.

A guarita era uma livraria ambulante que Manoel Raposo arrastava pelas ruas do Centro vendendo livros, pelo meio da década de 50. Dessa guarita, com energia improvisada de uma bateria de carro, Manoel Raposo foi o responsável pelas noites de autógrafos mais ruidosas que a cidade viu naquela época. E não viu mais. O jornalista Jáder de Carvalho protagonizou uma dessas noitadas. Vendeu 850 livros no dia do lançamento do Sua Magestade, o juiz. A guarita cresceu. Manoel Coelho Raposo se tornou um dos maiores livreiros do Ceará, numa época em que não havia esse negócio de franquias e redes. As nove livrarias Feira do Livro - no Ceará e Rio Grande do Norte - fizeram dele um respeitado distribuidor da literatura marxista e nacionalista do País. Era do balcão da Feira que saíam os livros da histórica editora Vitória, do Partido Comunista do Brasil (PCB); da Fulgor e Obelisco; da Editora Civilização Brasileira, do Ênio da Silveira; da Brasiliense, do Caio Prado Júnior; da Zahar Editora, responsável por trazer ao Brasil os marxistas norte-americanos.
Essa história começou a ser escrita quando um garoto de uns 17 para 18 anos saiu do Crato, corrido da casa do tio Pedro Felício, que o havia empregado numa loja de vender ferragens. Manoelzinho serrava ferro; contrito, também ajudava na missa - era um cruzadinho - e escrevia versos. Um belo dia, viu uma movimentação de gente que se encaminhava à praça Siqueira Campos em passeata. Foi junto. Descobriu que ali se travava uma luta, na base da palavra, pela Semana Inglesa. Os operários do Crato defendiam folga do trabalho aos sábados. De cima de um caixote que servia de palanque, o garoto não contou as pipocas. Foi lá e fez discurso. Na velocidade com que as conversas correm, Pedro Felício não gostou das idéias comunistas que estavam assolando a cabeça do rapazote. Expulsou-o de casa e o despediu. "Vá pra Rússia, seu subversivo, comunista", ouviu o menino desnorteado. "Aquilo me marcou profundamente", diz. No auge do desespero, entrou numa igreja e rezou. Quando saiu de lá, tinha Fortaleza nos planos. Pouco tempo depois se despedia de Deus.

No banco da praça

A lua estava amarelada naquela segunda-feira em que Manoel Raposo esquadrinhava a Praça do Ferreira. Do lado contrário ao da guarita, mais para a banda da lanchonete Leão do Sul, ficava o banco dos comunistas. - Era aqui onde se encontravam o Pedro Jerônimo, o Josafá Linhares, o lendário Papão, que virou personagem do Graciliano Ramos no livro Memórias do Cárcere, o Aluízio Gurgel e a turma de O Democrata, Maria Pontes, Morais Né, Odalves Lima, enumera um por um. Põe no rosto um sorriso entusiasmado de retorno no tempo. A Praça do Ferreira era o umbigo de uma Fortaleza avermelhada. Nesta cidade, que exalava idéias por todos os lados, com uma juventude que até pelo aumento no preço do ingresso de cinema fazia passeata e ato público, Manoel Raposo se tornou funcionário da empresa J. Lopes e foi estudar no Colégio Fênix Caxeiral.
Por essa época, o militante comunista Pedro Jerônimo entregou-lhe um livro que precisava ser lido sem demora: A Vida de São Luiz. Manoel estranhou um comunista envolvido com vida de santo. No miolo, porém, estava A Vida de Carlos Prestes. Numa outra ocasião, foi recrutado para a União da Juventude Comunista. O convite veio de um jovem alto e bem aparentado. Chamava-se Beni Veras. Deixar de ser empacotador para trabalhar em O Democrata (jornal do partido comunista) foi questão de dias. "Me decidi pelo partido comunista", fala com ar grave. Decisão que vai carregar para sempre.
Quando saiu de O Democrata, pediu 100 mil réis ao pai para começar o próprio negócio. Comprou o livro A vida de Luís Carlos Prestes. Vendeu, comprou dois. Foi assim que a guarita nasceu e, depois, a Feira do Livro. O comunismo sempre junto. Ficou amigo de Luís Carlos Prestes, Oscar Niemeyer. Tornou-se um militante sem precedentes na história da esquerda cearense. Era uma junção de livreiro, escritor, poeta, intelectual, editor, compositor, boêmio e, acima de qualquer intempérie histórica, stalinista. Como editor pôs na rua livros de cearenses como Moreira Campos e Jáder de Carvalho. Editou a revista O Saco, símbolo de uma das mais comentadas revistas de cultura na década de 70, em Fortaleza, com repercussão nacional; mais tarde publicou O Popular. Escreveu 22 livros entre poesia, economia política e teoria marxista. Como comunista pagou um preço elevado. Em 1964, Manoel Coelho Raposo teve todo o estoque de livros considerados "nocivos" à sociedade brasileira e confiscados pelos militares. Foi preso. A rede de livrarias cambaleou, e ele teve de pedir concordata. Dois anos depois, havia honrado todos os compromissos, mas redesenhou a estrutura da empresa, agora de menor porte.
Como stalinista, a situação ganhou ares de loucura, para uns, e de extrema coerência, para outros. O ano de 1956 ficou marcado pelo famoso discurso feito por Kruschev no XX Congresso do Partido Comunista Único Socialista (PCUS), conhecido por trazer a público "os crimes de Stálin". Manoel Raposo nunca aceitou as denúncias que promoveram um processo de desestanilização da esquerda mundial, dividiram os comunistas de uma ponta a outra do ocidente e criaram o revisionismo. "Chorei ao ouvir aquilo. Kruschev foi um traidor. Ele manchou para sempre o nome de um dos maiores gênios da humanidade. O homem que venceu a miséria do Nazismo. Sim, porque não foram os americanos que venceram a guerra contra Hitler, foi Stálin. Daquele dia em diante decidi lutar para defender Stálin."
E disso Manoel Coelho Raposo nunca arredou o pé. Crê fielmente que o futuro da humanidade é o sistema comunista. Com ele, a sociedade veria o fim da luta entre as classes proletária e burguesa e os trabalhadores dominariam os meios de produção. No comando, estaria um partido único, capaz de mostrar o caminho que libertará o homem do seu maior inimigo, a cegueira do capitalismo. Nem o termo stalinismo, usado com toda a carga pejorativa, o fez mudar de idéia. Para contrapor-se ao que chama de "traidores da Revolução", deu para escrever livros que honram o nome de Stálin e todos os meios usados por ele para sustentar a Revolução de 17 de outubro: da limpeza dos dissidentes da cúpula do partido, passando pelo banimento dos contra-revolucionários, à morte dos que resistiram à coletivização da agricultura na Rússia. "Desculpe a expressão, minha filha, mas não se faz revolução com beijinhos e tudo o que Stálin fez era necessário para a construção do comunismo."
O livreiro pôs no comunismo toda a sua vida. Aos 75 anos, completados em abril passado, mora no Centro, nos altos do prédio onde funciona a pequena Forgráfica Editora. Atualmente trava um luta contra o tempo e um enfizema pulmonar, que faz do ato de respirar uma batalha. Na pequena sala da editora, Manoel rumina memórias, rodeado de livros, dele e de outros autores, blocos de recibos empilhados, poeira, três ventiladores e uma bandeira do comandante Che Guevara, que observa tudo.
Do homem apaixonado pela boêmia, Manoel Raposo não fala muito. Cerca-se de uma discrição velada. Aqui, acolá escapa um "fumei muito, bebi como diabo". A história do menino pobre de Crateús, filho do cego Genuíno e de Toinha, sai nesses dias no livro Caminhos Paralelos - Um Homem do Mundo que está pronto para ser lançado logo após passar o período das eleições, no pátio do Theatro José de Alencar. Nele, Manoel Raposo se transforma numa espécie de Homero que recorre às musas e conta sua vida em forma de poesia épica. O livro traz ainda um trecho de Hera, romance autobiográfico interrompido - "por compreender que não é o romance o meu ofício" -, e de outros poemas escritos em várias fases da vida.
- Por hoje chega, né? Sentado num dos bancos da Praça do Ferreira, ele é apenas letra, palavra, poema, memória. Levantou-se firme e antes de ir embora relembra: "Vivi muitas coisas aqui. É tudo passado".
"Por hoje chega"
Fui, primeira vez, à casa de Seu Raposo em junho passado para entrevistá-lo. Ele estava no meio de uma crise, mesmo assim, resolveu me receber. Começamos a conversa com o acordo de que faríamos um pedaço da entrevista naquele dia e terminaríamos logo que ele se sentisse melhor. Mal começamos, ele puxou livros, leu poemas e contou, sôfrego, histórias da infância em Crateús, a chegada ao Crato, a vinda para Fortaleza. Enfileirou os feitos. Nessas idas e vindas da memória, quase sem perceber, estava diante de um homem que defendia Stálin com a fé de um cristão numa arena romana.
O esquema jornalístico de pergunta à espera de uma resposta já tinha ido embora fazia tempo. Antes de encerrar, convidou-me para ver com ele "uma pérola do comunismo, o verdadeiro cinema no tempo do camarada Stálin": o filme era A Balada do Soldado, de Grigori Chukhrai. Combinei de voltar dois dias depois para concluir a conversa. Quando liguei, seu Raposo estava internado. Lá ficou quase um mês. "Entre a vida e a morte", como ele relatou depois. Quando voltou para casa sofreu horrores com a reação alérgica à medicação.
Quase três meses se passaram e voltamos a nos encontrar. Logo após os cumprimentos, ele disse: vou ler para você a poesia que fiz quando saí da crise. Declamou o poema Amor e poesia, impresso, datado e assinado. De novo, a entrevista escorria entre os dedos. O homem que parece saído do romance célebre de Miguel de Cervantes escapole e dita ele os rumos da conversa. Onde paramos naquele dia mesmo? Quando chegamos em 1976, ele disse: "Por hoje chega, vamos marcar outro dia". Foi assim nos outros encontros. Agora, com mais liberdade eu mesma pedia os trechos dos livros para ler. Abria os pacotes para tirar de lá as publicações, batia a poeira.
Os temas que envolviam a vida familiar e a fama de boêmio romântico, estilo Castro Alves, não eram bem vindos. Só muito de leve, cedeu um pouco e declinou o nome de alguns amores. Ouvi algumas composições paridas no meio de profundas crises existenciais e amorosas. Para compreender o universo do Seu Raposo, saí ouvindo vários personagens que conviveram com ele na militância, na poesia, na literatura, na boemia e decidi contar a história dividida em três matérias. A primeira, publicada hoje, um relato sobre ele. Amanhã, o intelectual editor que abriu caminhos para gerações de jornalistas, escritores e boêmios; na quarta-feira, a construção do militante de esquerda e suas práticas políticas. É claro que Seu Raposo é muito maior do que tudo isso, mas a série de matérias é, pelo menos, um começo.

Depoimentos


"O velho Manoel Raposo é o último dos moicanos. Ele foi de uma geração de homens inteligentes que renunciaram à vida burguesa. Raposo se desfez de tudo para se dedicar à vida voltada para a luta do povo. Ele tem um sentimento de responsabilidade com o povo e é o último representante desse sentimento. Dedicou toda a sua vida, com toda a determinação ao que ele acreditava. Ele é um stalinista, fui trotskista, tivemos muitas divergências, mas trabalhamos muito juntos. Eu chamo isso de coerência e ele pagou caro. Foi um empresário bem sucedido, foi um dos maiores empreendedores que o Ceará teve e colocou todas as suas posses a serviço do que ele acreditava. Ele é um dos desses homens que viveram a vida plenamente".
Francisco Auto Filho, secretário da Cultura do Estado do Ceará


"Eu acho que Manoel Raposo é uma das grandes personalidades vivas do Ceará. Pela trajetória marcante na política e na cultura. Ele tem uma importância imensa para toda uma geração de escritores e jornalistas cearenses. Foi ele quem editou a revista O Saco e lançou todo um grupo de jovens autores, artistas plásticos. A vida inteira o Raposo fez isso. Sempre foi guiado pela utopia. Foi a utopia que determinou esse humanista. Pagou um preço altíssimo, mas até hoje guarda consigo essa coerência".
Rosemberg Cariry, cineasta


"O Raposo é um homem do povo. Nunca foi sofisticado. É um intelectual e vai ser isso a vida inteira. Mesmo sendo um empresário, um homem de dinheiro, por conta do seu posicionamento político, sempre foi um homem simples. Ele agrupava as pessoas, não tinha uma liderança agressiva. Conseguiu ter dinheiro, tinha muito dinheiro e usava isso para fazer coisas bacanas na cidade. Já tive umas brigas com ele, mas ele é uma pessoa singular: um intelectual, um comerciante que gostava de ser um produtor cultural, de fazer o que ele acreditava".
Seigbert Franklin, artista plástico

Fonte: Jornal O Povo

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