quinta-feira, 21 de maio de 2009

Um espírito livre



Educador, poeta e espírito livre: hoje, 21 de maio, comemora-se o centenário do poeta Filgueiras Lima, um arquiteto do humanismo e poeta das coisas da terra o povo

Se Antônio tinha uma dúvida de português, procurava imediatamente o pai, que, interrompendo as leituras costumeiras, folheava os quatro ou cinco dicionários à mão. Lá fora, corria o dia em Lavras da Mangabeira, no interior do Ceará. Vez em quando, um vento frio vinha do rio Salgado. Na casinha da família, o pai colhia de cada volume o significado da palavra procurada. Queria que o menino descobrisse: havia nuances. Demorada, a operação fatigava o caçula do professor e poeta Filgueiras Lima, cujo centenário é comemorado hoje na escola que, ao lado de Paulo Sarasate, ajudou a fundar em 1938. Por telefone, Antonio, hoje com 60 anos, relembra os menores gestos do pai. Fala da sala da diretoria do colégio Lourenço Filho. Ali, comanda o empreendimento que foi a menina dos olhos de Filgueiras Lima.

“Vamos comemorar o centenário do poeta realizando o que ele sempre fazia: uma eucaristia com os alunos da escola”, adianta Antônio Filgueiras Lima Filho. Porque educação e poesia sempre formaram um par ordenado harmônico na vida de Filgueiras Lima. No livro Ensina como quem reza - Vida e tempo de Filgueiras Lima, biografia assinada por Juarez Leitão disponível no site que trata da obra do poeta, lê-se: “Havia entre o poeta e o professor a mais perfeita compatibilidade e, ao que parece, mais do que compatíveis, a poesia e o ensino se fizeram em sua vida reciprocamente necessários. Não poderíamos ter o poeta sem o compromisso humano do Educador, a repartir seu conhecimento, suas descobertas, sua filosofia e suas crenças com outros construtores do mundo, a juventude vigorosa que deveria continuar a compor o tempo, a vida e o país”. Foi assim desde o início. Mesmo antes da publicação de Festa de ritmos (1932).

Mesmo antes de ocupar a função de Inspetor Regional do Ensino, ainda em 1927. Para o escritor e professor Dimas Macedo, Filgueiras Lima “foi um dos grandes poetas do modernismo do Ceará”. Se antes dedicara-se de corpo e alma ao manuseio do soneto tipicamente parnasiano, com os ventos de mudança soprados pela Semana de 1922, o poeta cearense renovou-se. E, com ele, a poesia local. “Filgueiras participou do primeiro momento desse modernismo, da fase mais heróica. E foi também um grande educador e um dos poetas mais populares do Ceará. Era disputado nas escolas pra recitar os poemas.”

Ainda segundo Macedo, a temática da poesia de Filgueiras Lima “era telúrica”. Assim, ele acredita, a obra “Terra da luz condensa essa temática”. Outra grande marca da poesia do cearense era a sonoridade. “Poeta de sonoridade muito aguda e forte apelo amoroso. Poeta de grande significação e grande arquiteto do movimento Nova Escola”. Filgueiras defendia a língua nacional e empunhava a bandeira dos heróis brasileiros que participaram da II Guerra Mundial. De acordo com Macedo, essas características não entravam em choque com o ideário modernista. Juarez Leitão escreve: “Sonetista caprichoso, mestre do bendizer parnasiano, da rima e da métrica, não temeu a chegada da poesia moderna, sendo no Ceará um de seus precursores. Evoluiu, ousou, atirou-se sem medo no novo modelo formal dos seguidores da Semana de 22. Isto é, quando andou trouxe o tempo e do tempo continuou a fazer o barro de suas fantasias”.

Filgueiras Lima nasceu em 21 de maio de 1909 e faleceu em 28 de setembro de 1965. Deixou três filhos e esposa, dona Amazonia Braga de Filgueiras Lima. Escreveu Festa de Ritmos (1932), Ritmo Essencial (1944), Terra da Luz (1956) e O Mágico e o Tempo (1965). Em 1990, a Imprensa Universitária publicou o volume contendo as obras completas do poeta. Foi professor e escritor. Fundou o Conselho de Educação do Ceará.


EMAIS

A saudade do piano
(de Festa de ritmos)

Em meio à sala, agora tão deserta,
o piano dormita.
E uma saudade como que palpita,
desperta,
na sua alma trêmula de sons,
na sua alma de riso e de queixume,
irmã das almas límpidas dos bons,
onde florescem sonhos e segredos:
– é a saudade sutil de teu perfume,
– é a saudade macia de teus dedos...

Fonte: Jornal O Povo

domingo, 17 de maio de 2009

Rol de loas pro meu Ceará


Do Antônio Bezerra ao Cariri, Eleuda de Carvalho faz um passeio de louvação pelo seu estado querido. No meio do caminho, faz pausas em vários lugares e encontra Estrigas, Patativa do Assaré, Moreira Campos, Ana Bilhar, entre outros

Começo invocando Santana mestra, por via dela dona Rachel de Queiroz, suas filhas Conceição e Maria Moura, as mulheres do sertão, todas, anônimas e nominadas - a Sinhá do Perereca, contadora de histórias e fazedora de bonecas de pano de quando eu era menina. Beatas caboclas, brincantes, guerreiras, louceiras, labirinteiras, agricultoras. E louvo a acauã, os caborés, corrupiões, almas-de-gato, as avoantes e os bichos todos da caatinga, que ainda resistem, feito a gente sobrevivente determinada. E os cardeiros, os pés de juá, carnaubeiras e cajus. As cozinhas de fogão a lenha, a galinha na água grande, o mel de jandaíra com farinha na cuia coité. Os jericos mansos e as altivas cabras. O céu azul e as noites de luar, ocasos vermelhos e manhãs de orvalho. As pedras encantadas e as chapadas, do Cariri sagrado à Ibiapaba aonde pregou António Vieira e onde foi devidamente devorado o padre Pinto: louvo o banquete, a comida, os comensais.

O Cego Aderaldo e Patativa, e Geraldo Amâncio, e os violeiros, emboladores de coco, rabequeiros, tocadores de sino, o maracatu, mestre Piauí do boi de Quixeramobim, o mestre Alfredo do Pife e a alegria dos Irmãos Aniceto louvo. E louvo Ednardo, Calé Alencar, Téti, Chico Pio, Waldonys, Mona Gadelha, Fernando Catatau e o Montage, cirandeiros, roqueiros, punks, seresteiros, os poetas da Praça do Ferreira. Gerardo Mello Mourão, Moreira Campos, os irmãos Maia - Virgílio e Luciano, a poeta Ieda Estergilda, os contos das Natércias (Campos e Pontes). A cerâmica da Côca. O filé da Perpétua. Os doces de dona Balu. A peixada, o baião de dois, o aluá do Café Azteca e o pastel da Leão do Sul, eu louvo, que é também poesia este vento, esta luz, o balanço do mar.

Louvo a Confederação do Equador, a Padaria Espiritual, a Sedição do Juazeiro, o Caldeirão, a Massafeira, O Saco, a Agulha do Floriano. O jornal O POVO. O jangadeiro Chico da Matilde - o Dragão do Mar, a moça soldado Jovita Feitosa, dom Edmilson Cruz, a professora Luiza de Teodoro, a Verinha do Mucuripe, a cacique Maria Pequeno, os Tapebas, frei Tito de Alencar, Rodolfo Teófilo, Antônio Sales, Ana Bilhar, dona Lurdes, Rosa da Fonseca, louvo todos que se dispuseram e se dispõem a lutar pela justiça, a liberdade e o sonho. Antônio Conselheiro, Ibiapina, dona Bárbara do Crato, Preto Zezé, o passado e o presente eu louvo. E louvo Naninha, Vassoura, Zé Tatá.

Praia de Iracema, Floresta, Barra do Ceará, Antônio Bezerra. O Benfica - e o casario preservado pela universidade. A UFC, o velho Liceu, o Ginásio Santa Maria Goretti que não existe mais, os grupos escolares da periferia louvo. A igrejinha do Patrocínio, aquela outra que espia o mar da Leste Oeste, a cinzenta catedral e a beleza dos seus vitrais. O Theatro José de Alencar, o cavalo de pastilhas do Aldemir no Dragão, a caixa-dágua do Leo, o cachorro vermelho de lata do Hélio, a árvore de ex-votos do Zé Tarcísio e seu jardim suspenso no burburinho de um bar. Louvo a boniteza do Estrigas na parede do moinho, e a arte do seu sítio acolhedor do Mondubim, ao apito do trem louvo Nice, seu sorriso, suas linhas, suas cores, o seu ouvido de ouvir flores eu louvo.

(Só não louvo o eterno descuido duplo com a nossa casa: o nosso mesmo e o dos que elegemos para nos representar).

>> ELEUDA DE CARVALHO é jornalista e doutoranda em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Fonte: Jornal O Povo

Ser do Ceará - Cantos em sol



O poeta Henrique Beltrão escreveu quatro poemas sobre o seu amor ao estado do Ceará. Para ele o cearense hoje possui uma Autoestima mais elevada

Henrique Beltrão é cearense, poeta e autor do livro de poemas Vermelho, publicado de forma independente em 2006. Ele presenteou o Ceará com quatro poemas cultivados na sua relação com o estado. Henrique Beltrão é também cantor. Alguns de seus versos foram musicados por amigos e colegas como Isaac Candido e Pingo de Fortaleza. Trabalha na rádio universitária, como radialista, onde se dedica na divulgação e valorização da música e da literatura produzida no Ceará. “Mas eu não me considero bairrista. Gosto muito de meu país como um todo. O cearense hoje se reconhece mais como brasileiro, hoje já tem uma autoestima muito mais elevada”, comenta.


POEMAS

Alegre honraria
Sede à beira do olho d’água
e este Sol que não se apaga...
O embalo da rede
e o balanço da jangada...
Um vaqueiro encourado
pelo Padim abençoado...
Além das serranas fronteiras,
conterrâneos pela Terra inteira...
O riso pronto para a piada,
os braços prestes aos abraços...
Coco, maracatu, repente
dizendo da minha gente...
Serra, mar, cidade e sertão
cantando o tempo sem conta
na ampulheta da imensidão...
As linhas livres desta poesia
são de renda cearense:
minha mais alegre honraria!

Ser do Ceará
Trago na palavra o verde deste mar:
em cada um de nós ecoa nosso jeito de acolher
como quem colhe a imensidão solar.
Sinto no seu gesto vermelha alegria de viver...
em todo recanto do sertão semeia eterno verão,
pousa no que faço o abraço vindo de você.
Bebo, além do azul, à beira do horizonte,
as linhas das serras nuas, semelhantes às suas,
onde olho d’água e cachoeira têm fé na fonte.
Quero, qual luz pousada em versos ao vento, cantar
a beleza indizível do gosto que dá ser do Ceará.

Ceará ser
O Ceará canta em sol maior
na verde cadência dos seus mares.
O Ceará conta em céu sem fim
com sertanejo repente patativando os ares.
O Ceará sente que a poesia tem sede
nas serras sinuosas do orgulho que revelares.
Palavra de luz
O poeta é feito da sua gente.
Seus versos são filhos do seu lugar.
Cada palavra é vizinha do indizível,
a rima é um favo do inefável...
Sou o sol, o céu, a serra, o sertão...
Sangra o açude da invenção...
Os rios de mim vão desaguar no mar...
Não há chuva que possa abarcar o Ceará!
Na cotidiana e infinita viagem,
meu povo é a mais bela paisagem:
acolhe e compartilha com alegria
o bom humor, a farinha e a poesia.

Fonte: Jornal O Povo

Travessa Crato - Forró do Raimundo


Por detrás de grandes óculos de grau, Raimundo dos queijos acha graça do bom humor dos frequentadores de sua "confraria". Ele ajuda a animar o Centro. Todos os domingos

Como e sem falta, a carga de queijos frescos chega todos os dias à confraria do “seu” Raimundo. Coalho e de manteiga. Supervisiona tudo de perto, enquanto o ajudante recolhe o material, ele olha uma por uma, para ter certeza se a qualidade é boa mesmo. Levanta e abaixa os olhos, afasta e aproxima a mercadoria. Aprovada, enfileira nas prateleiras de madeira ou guarda no balcão de vidro que divide a pequena mercearia, bar ou confraria, como preferir. Pode pedir de muitos quilos sem medo. No final do dia, está quase tudo vendido. “Não gosto de dizer o quanto eu vendo não, faz bem não. Cresce os olhos. Mas pode colocar aí que eu vendo bem”. Então está certo.

Faz muito tempo que Raimundo deixou de conduzir o sobrenome que recebeu na pia batismal. Se alguém perguntar pelo “seu” Oliveira ou “seu” Araújo ali pelas bandas da Travessa Crato, ruazinha entre a Conde D´Eu e General Bezerril, provavelmente vai passar batido. Agora, se mencionar o Raimundo dos Queijos, pronto! São muitas as direções no vazio de domingo do Centro da cidade. “De primeiro, isso tudo era um deserto, ficava sem um pé de pessoa. Depois que comecei a abrir aos domingos, foi uma maravilha”, lembra a mudança sem falsa modéstia Raimundo de Oliveira Araújo, 73 anos, “dos Queijos” há três décadas. Tempo marcado desde que o comerciante do ramo de frigorífico decidiu investir por outro norte mais lucrativo, porque “é ruim para um velho trabalhar com carne pesada”. Hoje, seu pequeno bar, de cadeiras distribuídas no meio da travessa, é o responsável por um “alarido organizado” em pleno Centro de Fortaleza que acontece há 10 anos aos domingos.

O nome entrega bem: é o queijo a especialidade. Vindo de Iracema e de Tauá, o melhor no crivo de Raimundo. Mas não para por aí. Raimundo também trabalha com toda qualidade de doces, rapadura, ovo de codorna, castanha de caju. A fama mais recente, no entanto, veio por outro motivo. A ideia é muito simples e veio do engenheiro Ernando Honorato, casado com uma prima de Raimundo: abrir aos domingos e preparar os petiscos, seguindo cardápios diferentes a cada semana. Galinha, carneiro cozido, mão de vaca. “Ele adora inventar”, sintetiza o dono do bar. Espalhou umas mesas pela travessa. A cerveja está sempre gelada e a clientela é fiel. Ainda falta uma coisa. “Para completar, a banda dos cegos vem tocar a partir das 10 horas”. Quem são as pessoas da banda, “seu” Raimundo? “Sei do nome não, só sei que são os cegos”, ri-se meio encabulado.

Regional Asa Branca
Os irmãos Vanda Lúcia no vocal e triângulo; Francisco Honório, no violão; Valdeci, na sanfona, formam com outros dois amigos o grupo Regional Asa Branca, narrando com o som doce e marcado o mundo que não podem ver. Tocam de tudo, é só pedir. E tome São João na Roça, Olhinhos de Fogueira, Quero chá, Eu não preciso de você. “Eiiiiiiiiiita que essa é boa, viu?”, grita um, com a garrafa de cerveja debaixo do sovaco, dançando ao som do forró. “Esse aí dança até com o ‘plim’ do garfo caindo do chão”, brinca Raimundo, já bem mais à vontade para a conversa.

Tem sempre tanta gente assim, seu Raimundo? A visita foi no último domingo, dia que ele considerou de movimento fraco, embora quase todas as mesas estivessem ocupadas. “Você não viu nada! Hoje, é porque é o Dia das Mães. Num dia bom, vendo 20 caixas”, calcula. E não há como falar do simpático Raimundo sem ligá-lo ao seu estabelecimento. O espírito é da informalidade. De camiseta, bermuda e tênis, ele chama muitos dos clientes pelo nome, abre o sorriso e os braços para as velhas palmadinhas nas costas. Bem sabe ele que a regra é tratar bem, mas, sinceramente, ele não precisa de esforço. Geralmente fica ali, no cantinho, escutando as histórias da moçada que frequenta seu estabelecimento. A maioria, na faixa dos 50 ou 60 anos. “’Seu’ Raimundo, prepare ali uma carne de sol e anote que depois eu venho acertar”, se aproxima uma senhora de cabelos curtos e escovados, salto alto e maquiagem. “Fiado tem todo dia”, avisa ele.

Todos são loucos...
“Aqui todos são loucos... uns pelos outros”, avisava a placa antiga, retirada há pouco tempo. Raimundo não explica direito, mas diz que resolveu tirar porque havia uns querendo ser melhores do que os outros. “Hoje quero fechar meio-dia, porque é o dia das patroas, né?”, avisa, para corrigir-se em seguida: “Ora mais! Domingo passado eu queria ter saído às duas e só consegui fechar o portão às cinco (da tarde). Tem cliente que só vai embora quando a gente expulsa”. Todos são muito boa gente, como ele garante. Pessoas de todas as categorias de profissão. “Tem o Waldemar Caracas, fundador do time do Ferroviário. Tem 101 anos. Vem tomar vinho todos os domingos. Vinho seco da melhor qualidade!”, assegura, sem revelar a marca.

Ora mais, ali o assunto é sério. Por mais que goste de beber de vez em quando, esse lugar não é o trabalho. Por mais que o domingo faça todo sucesso, a festa ainda continuará a se limitar a esse dia da semana. “Eu não dou para trabalhar só com bebida. Nem vendo cachaça. Não tem coisa pior do que bêbo, tem?”.

Raimundo nasceu em Porção, distrito de Chaval, região Norte do Ceará. A primeira profissão herdou do pai, era vaqueiro. “O mundo vai levando a gente e quando eu vi, tava aqui”. Mora hoje na cidade 2000 e os cerca de sete quilômetros que separam a casa do trabalho compõem o único percurso de sua rotina. É casado, “e muito bem casado”, tem três filhos homens e uma mulher. “E eu aqui sou o neto”, grita um gaiato que escuta a conversa. O Centro de Fortaleza de Seu Raimundo limita-se àquelas duas esquinas da Travessa. Quando muito, passeia pela Praça do Ferreira, três quarteirões à frente. Até para resolver as coisas ali perto, pede a um funcionário. “O Centro para mim é só trabalho mesmo”, resume. Para já, já acrescentar que o Raimundo dos Queijos se diverte muito no Raimundo dos Queijos. “Aqui é minha praia. Dá pra conversar, encontrar amigo, é bom demais! No dia em que por acaso não trabalhar, gosto de ficar em casa, Deus o livre de Centro”.

Fonte: Jornal O Povo

domingo, 3 de maio de 2009

O Resgate do maracatu

Mestre do Leão das Cordilheiras e Nação Carneiro Manso, de Glória do Goitá, também tiveram trabalho reconhecido pelo Minc

José Fernando da Silva saiu de Glória do Goitá há 12 anos com um objetivo claro: resgatar uma nação de maracatu e passar a viver dela, depois de ter passado a vida inteira em outras nações.


Assim como o Leão da Cordilheira, o Carneiro Manso passou anos parado. Voltou à ativa em 2004 e cresce a cada dia como referência cultural. Foto: Alcione Ferreira/DP/D.A Press

Percorreu várias cidades da Zona da Mata sem sucesso. Não desistiu. Até encontrar o Maracatu Leão das Cordilheiras, em Carpina.

O herdeiro havia falecido e o maracatu estava mergulhado no marasmo há anos, pois a família não quis dar continuidade ao legado do mestre. "Procurei, me ofereci para tomar conta a partir dali, trazendo-o para Glória do Goitá e investindo tudo que podia", explica José Fernando, o Zé Duarte, diretor do Maracatu Leão das Cordilheiras desde 2006, cuja sede fica justamente dentro de sua pequena casa no bairro Nova Glória.

Aos 40 anos, Zé Duarte está ciente de sua juventude frente ao legado que data de 1946 do Leão das Cordilheiras. E não esconde a expectativa quando admite estar desempregado, vivendo exclusivamente do pouco que consegue com o carnaval e em datas festivas em cidades próximas. Ele foi o segundo contemplado em Glória do Goitá do prêmio Humberto de Maracanã - Culturas Populares do Ministério da Cultura.

Com apenas cinco pessoas na família para gerenciar o maracatu, confeccionar as roupas e cuidar do orçamento, a família de Zé Duarte se une por uma causa cultural. A mãe, Maria dos Prazeres, 58, aprendeu na marra a confeccionar peças usadas pelos caboclos-de-lança, baianas, reis e rainhas. Com os R$ 10 mil repassados pelo Minc, foi difícil fazer algo de peso, além de saldar dívidas de anos anteriores. "Se não fosse o prêmio, dificilmente teríamos as condições de agora para seguir em frente, era muita dívida. Teve gente que até nos ameaçou, foi muito ruim", explica Maria dos Prazeres.

Para cidades próximas, a família chega a cobrar R$ 5 mil às prefeituras por uma apresentação, montante a ser dividido entre os quase 80 integrantes quando o bloco sai completo, além de servir para zerar os custos - como bem explica a irmã Edvania Maria da Silva,professora da rede municipal e tesoureira informal do Leão das Cordilheiras.

Hoje eles dividem as atenções em Glória do Goitá com outro premiado do Ministério da Cultura, o Maracatu Carneiro Manso, fundado em 1950 e mais conhecido fora da Zona da Mata. Depois de 15 anos parado, o Carneiro Manso voltou às atividades apenas em 2004 com o trabalho de José Rinaldo da Silva, neto do fundador Manoel Francisco Correia. E a cada aparição eles mostram que podem voltar a ser a referência cultural de outros tempos, não apenas em Glória do Goitá, mas no estado inteiro.

Fonte: Jornal Diário de Pernambuco

Enfim, o reconhecimento

Até então longe dos holofotes, mestres da cultura popular têm trabalho premiado pelo Ministério da Cultura

Aventureiros e exploradores costumavam dizer que as relíquias mais importantes de um povo nunca seriam reveladas por completo aos forasteiros. Séculos depois, a ciência e a história provaram que tantas maravilhas naturais e históricas sempre estiveram debaixo do nosso nariz e, se não foram encontradas antes, é porque geralmente costumamos olhar primeiro para muito longe.


Mestre Ciriaco do Coco ensina o "ofício" há décadas na Zona Rural da cidade. Com o dinheiro do prêmio, construiu a Casa do Coco para perpetuar sua arte e comprou roupas novas para as coquistas. Foto: Alcione Ferreira/DP/D.A Press

É no mínimo curioso conferir alguns nomes do Prêmio Humberto de Maracanã - Culturas Populares do Ministério da Cultura. Somente em Glória do Goitá, a 66 km do Recife, entre três premiados há dois representantes culturais que dificilmente teriam suas histórias e artes conhecidas fora de Pernambuco se continuassem a depender somente de datas festivas, carnaval e da "boa vontade" política típica das cidades além do eixo metropolitano.

Aos 81 anos, o Mestre Ciriaco do Coco pode se orgulhar de muita coisa que fez na vida, a começar pelos seus 24 filhos, 34 netos e 20 bisnetos. Nascido João Sebastião do Nascimento em 26 de junho de 1928, Mestre Ciriaco não existe no Google. Parece besteira, mas em tempos de uma sociedade da informação cada vez mais conectada, é um reflexo notório de como ainda há tanto a percorrer pela cultura de um povo. E às vezes estamos todos tão próximos. No site oficial do prêmio, na página do Minc, o leitor encontra apenas o nome de batismo, não o nome pelo qual Ciriaco brinca e ensina rodas de coco há décadas na Zona Rural de Glória do Goitá, repassando conhecimento "até quando eu morrer", como costuma dizer aos visitantes.

A saúde parece de ferro - não somente pela prole - e ajuda a esconder a idade. Ciriaco costuma percorrer à pé os 12 km que separam sua casa no Sítio Urubu até o centro de Glória do Goitá. A garganta não tem mais a força de outrora. Mesmo assim, quando começa a conduzir uma roda de coco, Ciriaco só vai embora quando desligam o som. Porque do contrário ele vira a noite cantando. E as filhas, dançando sem parar e sem cansar. Preocupa Dona Maria, a esposa, casada com o mestre desde 1954. Mas não preocupa Ciriaco. Com a humilde verba de R$ 10 mil repassada pelo Minc, ele resolveu não deixar mistérios para exploradores ou aventureiros e construiu a Casa do Coco para sua arte se perpetuar por meio dos filhos, netos e bisnetos. E quem mais quiser.

Além da recém-construída Casa do Coco, o dinheiro ajudou a comprar um novo equipamento de som (usado, modelo bem antigo) e algumas roupas novas para as coquistas. Em contrapartida, exigência do Ministério, deu aulas durante três dias em oficinas para alunos da rede pública de ensino no Sítio Urubu.

E as oficinas ajudaram a mostrar que Mestre Ciriaco do Coco pode até entrar no Google a partir de agora, mas certas coisas realmente não mudam nunca. Analfabeto e sem ter tido condições de estudar quando criança, Ciriaco entrou na sala de aula e não entendeu quando todas as 17 crianças não tinham sequer um caderno.

A vida difícil no interior e a falta de perspectivas do passado ilustram algumas das letras de suas músicas, mas nãorefletem no humor de Mestre Ciriaco, que já prepara uma grande festa na Casa do Coco para seu próximo aniversário com ajuda do filho Queno de Alagoinha (José João da Silva), o principal herdeiro da arte do pai.

Mestre Ciriaco é considerado o último representante do coco-de-roda na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Herdou a brincadeira ainda criança, quando aos 13 anos começou a seguir as rodas do pai e aos 14 conduziu sua primeira roda de coco. Sobre o pai, ele desconversa um pouco, diz que não lembra tanto. Mas não deixa de cantar uma música por onde confessa a frustração de não ter sido permitido entrar numa escola, aprender a ler, a estudar. Hoje, Ciriaco é mestre e se preocupa em ensinar aos outros. E promete muito mais, agora com seu espaço próprio para os coquistas da região.

Fonte: Jornal Diário de Pernambuco

Um canal de divulgação da politica, esporte, cultura e história do Ceará e do Nordeste.

Powered By Blogger