terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Peregrino das cores


Preta Velha do Maracatu, Franco Braga, 46, guarda a sabedoria do maracatu. Figurinista, ele busca o luxo e o brilho para a apagada Domingos Olímpio.

Franco Braga caminha quase diariamente pelas lojas do Centro da cidade. Seus pés são guiados pelos olhos. Eles garimpam o comércio à procura de objetos decorativos, novidades no mercado. “Você tem que sair peneirando. É quase uma peregrinação. Passo o dia todo vendo o que tem numa loja, o que não tem na outra, diferente de São Paulo que em uma loja só você compra tudo. Eu passo todo dia no Centro, mesmo sem comprar. Sei que um dia eu vou precisar e aí eu já sei onde tem. Fora os que me ligam para saber onde comprar determinado material”.

Preta Velha do Maracatu, guardadora da sabedoria e responsável por repassar aos demais a tradição, Franco Braga, 46, funciona como um coringa do Maracatu Vozes d’África. Além de incorporar a hierárquica personagem na avenida, ao lado do Preto Velho, ele assina o modelo de todas as fantasias dos 320 participantes do grupo, que desfila no próximo domingo, às 21 horas. Na concentração, momentos antes de desfilar, ele veste todos, arremata um ponto, ajusta um adereço. Só depois, cuida de sua roupa.

Este ano, o seu maracatu vem com o tema da libertação dos escravos. Personagens como Princesa Isabel, Castro Alves, Zumbi, Chico da Matilde, mais conhecido como Dragão do Mar, estarão na avenida. No desfile, mesmo as personalidades menos “gloriosas” precisam de luxo. As vestes do Dragão do Mar são simples, muito diferente da Princesa Isabel. “Mas ambos podem ser luxuosos. Só não podem ser desproporcionais para não descaracterizar”. Todas as roupas do desfile foram pensadas, desenhadas e tiradas o modelo por Franco. Depois, ele supervisiona o trabalho de oito costureiras. Mas nem todas são do Vozes d’África. Parte delas está com outros maracatus, aos quais está prestando serviço. A casa nesse período vira uma loucura e exige de Franco um jogo de cintura similar ao seu talento. No clima acirrado de disputa entre as agremiações, Franco convive de forma “harmônica” com inimigos de amigos. A casa, localizada no centro, possui três entradas como estratégia de sobrevivência. “Para não ter perigo do povo se encontrar e ter briga. Um entra por ali, fica na sala, outro vai num vão diferente. A gente vai levando. O importante é respeitar profissionalmente cada um, mesmo que seja de opinião diferente”, revela o segredo de tanto carisma.

Franco sobrevive do trabalho manual há mais de 20 anos. “Sempre fui artesão. Eu assistia ao desfile jovem e tinha medo da cara preta. Esse medo de criança... Mas aí o medo passa a ser uma admiração”. Até chegar ao rosto de falso negrume, Franco desfilou na ala de índios, depois com os negros, até chegar à Preta Velha, posto assumido há seis anos e cativado com orgulho. “A partir do momento em que você veste a roupa, você tem que viver a personagem. Você vira uma velha e tem que agir como uma velha. Você veste a roupa e incorpora, ela vem, chega. Na concentração, você já vive o personagem. Na avenida, você vive a emoção”.

Desde quando entrou para o Vozes D’África, somente ano passado ele não participou do desfile. Em 2008, passou o Carnaval em São Paulo, mas dormiu no hotel agarrado com um litro de uísque. Havia fechado contrato com a escola de samba paulista Nenê de Vila Matilde, cujo enredo era Câmara Cascudo. Se aqui no Ceará, os dias que antecedem o desfile são loucos pela demora da liberação da verba municipal, em São Paulo a sensação é a mesma, mas justamente pelo motivo contrário. “É muita fantasia. É muito dinheiro. O acordo era de deixar as fantasias prontas na avenida. Eu passei uma semana sem dormir para terminar. Tanto que eu não desfilei. O samba troando na avenida, e eu dormindo no hotel, com o meu uísque”.

Em Fortaleza, não haveria perigo de repetir o fato. Vozes d’África está no sangue. Apesar de constatar que o glamour do Carnaval de São Paulo supera em muito ao da Domingos Olímpio, ele preferiu voltar para a sua terra Natal. “Eu fiquei muito triste lá em São Paulo. Assistia na televisão, via o samba em São Paulo e no Rio de Janeiro; o frevo no Recife; o axé na Bahia. Quando iam falar do maracatu de Fortaleza, mostravam a arquibancada caída”.

Com a vida entregue ao maracatu, Franco divide seus trabalhos com a atividade de decorador de festas. Do batizado ao casamento, do São João ao Réveillon, ele faz artefatos e deixa a festa ao desejo do cliente. “São artes diferentes, mas quem faz uma decoração de carnaval está preparado para qualquer coisa”. A diferença, no entanto, não fica apenas no estilo da decoração. No carnaval, ele vive e protagoniza a festa; nas demais comemorações, ele não participa. É um profissional. Após entregar o trabalho, debanda para casa. “Eu já estive por dentro dos muros altos da Aldeota, onde acontecem as maiores festas, onde rola o dinheiro, onde só entram as criaturas convidadas. Penetra não tem vez. Nessas, eu não assisto à festa. Entrego e dou o tchau. É a mesma coisa que eu fiz em São Paulo... Entreguei na avenida e fui dormir”, compara.

Paixão festeira mesmo só na Domingos Olímpio e nas demais apresentações feitas, esporadicamente, ao longo do ano. Nas andanças, o Vozes d’África já atravessou o oceano atlântico e esteve na França por três vezes, quando participa de festivais de folclore. “Lá tá o mundo todo te assistindo. O maracatu é uma coisa esperada. A gente fica por último para segurar o público. Só não é valorizado aqui, no povo do Ceará. A gente também se apresenta nas escolas. Você tem que levar a cultura para o povo. Você carrega nas costas e não tem preço que pague”.

Fonte: Jornal O Povo

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A doença do carnaval.



Na proa do Maracatu Nação Baobab, Raimundo Praxedes, 61, começou no Carnaval atrás do balcão - literalmente. A paixão surgiu quando ainda trabalhava numa loja que vendia serpentinas e máscaras. De lá para cá, a doença só fez piorar.

A doença foi arrasadora. Raimundo Praxedes tinha 24 anos, a saúde em dia, pernas e braços fortes, cabeça no lugar. Mesmo assim, foi tiro e queda. Trabalhava na loja do tio, no Montese. Era 1972, não lembra direito. O Bazar das Novidades comercializava artigos que, em fevereiro, iam parar na avenida, enfeitando os corpos suados dos brincantes. A loja foi o cenário do mal que veio rasteiro. Primeiro fez-se curiosidade. Depois, comichão. Até que finalmente levou Praxedes embora.

“Todo mundo que brincava Carnaval me convidava pra dançar. Eles iam comprar alguma coisa e me chamavam. Eu ia pro corso pra olhar o material que a gente vendia, que a gente fazia. A minha história de Carnaval começa aí.” Praxedes era contínuo. Passava os dias cotejando entradas e saídas, conferindo gastos, estabelecendo limites para as compras. Era um tipo de burocrata da folia. Ganhava dinheiro com a festa, mas não se interessava por ela. De tanto convidarem, uma hora ele cedeu. Foi assistir a um desfile de Carnaval. Na avenida, viu o colorido de máscaras, plumas, paetês, confetes, serpentinas. Os mesmos apetrechos que ele contabilizava. “Depois montei minha própria escola de samba.” Assim, operação lógica, de espectador a líder de escola de samba. Como dois e dois só pode ser quatro, Praxedes abraçou a doença. Passou a viver dela.

Logo no começo, antes de montar escola própria, Praxedes foi incumbido de tarefa aparentemente simples: criar um maracatu pra desfilar dentro da escola Girassol. Como se fosse uma ala de baianas. As idéias pipocaram na cuca do carnavalesco incipiente, e a luzinha piscou no alto dela: farei um maracatu diferente. O grande diferencial: ele vai ser alegre. “O maracatu não é essa batida fúnebre. É alegre, porque é do negro. É contagiante. É pra cima. O negro passava o dia inteiro na chibata, mas de noite ele tava lá tocando os tambores. Batiam nem que seja numa tábua, invocando os caboclinhos deles, sobrevivendo, fugindo. Como fez o Zumbi dos palmares.”

Nessa época, o maracatu de Fortaleza era algo estranhíssimo. Tinha as figuras dos orixás, as porta-estandartes, uma ala de africanos, outra de baianas. E índios. Não os tapebas, tremembés, pitaguarys ou jenipapo-kanindé, mas sioux, os famosos indígenas dizimados por colonizadores vindos da Inglaterra há alguns séculos. Não aqui, obviamente. Nos distantes Estados Unidos da América. Eles vestiam calças e camisas de couro cheias de uma franja que estalava no ar a cada passo de maracatu. Eram bonitos de se ver, mas totalmente alienados da cultura local. Praxedes manteve africanos, orixás e porta-estandartes, mas sacou fora os gringos. Em seu lugar, pôs índios da casa. “Há um estudo afro dentro do meu maracatu que torna ele diferente de tudo aqui em Fortaleza.”

A cura é o maracatu
Num dia qualquer de 1994, Isidoro Santos, um figurinista de Carnaval respeitadíssimo na cidade, bateu à porta de Praxedes. Por recomendação médica, tinha que fundar um maracatu. Praxedes achou a conversa estranha. Nenhum médico receitaria maracatu. Mesmo um falso médico evitaria dar tanta bandeira sugerindo ao paciente que fundasse um bloco de maracatu e fosse desfilar no Carnaval. Mas Isidoro Santos já era parceiro antigo. Por muito tempo, havia executado as criações do amigo. Praxedes tinha a idéia, Isidoro a tornava realidade. “Nem no Rio de Janeiro tinha um figurinista como ele. Eu não queria fundar o maracatu, mas sabia que era pra melhora dele. E assim nasceu o maracatu Baobab.” Ele sabia das complicações de saúde de Isidoro. Sabia de sua doença por Carnaval. Atendeu o pedido prontamente.

Mas antes da fundação do Nação Baobab por recomendação médica, Praxedes viajou. Pesquisava outros maracatus. Percorreu Norte e Nordeste, mas foi em Recife que deu de cara com um maracatu diferente. Lá, a modalidade tinha um enraizamento na cultura afro que Fortaleza nunca vira. Os blocos saíam dos terreiros e passavam por um longo ritual de oferendas e pedidos de bons agouros. Em seguida, outra etapa iniciava-se, a de agradecimentos. Estava tudo escrito no grande livro da matriz africana. Era só fuçar, cavar, cheirar e aprender. O maracatu era profundo. Espaço algum sobrava. A doença havia tomado Praxedes por inteiro. Mesmo assim, ele casou quatro vezes, fez sete filhos. “Cansei de pagar pensão”. Numa das investidas, conheceu a ex-companheira Eulina Moura, a primeira rainha mulher do maracatu de Fortaleza. “Todo mundo na cidade disse que eu estava gostando de um travesti que desfilava em maracatu.” Tudo porque era tradição ver homens vestidos de mulher desfilarem como rainhas na avenida. Mas Eulina era diferente. Era mulher de verdade.

No ano seguinte ao de sua fundação, o maracatu Nação Baobab ganhou o primeiro desfile organizado pela prefeitura da capital cearense. Era 1995. Na Bela Vista, casa do bloco e sede da empresa de realização de eventos de Praxedes, houve festa. No terreiro do bairro Jardim Jatobá, também. Porque é lá que acontecem a concentração espiritual do maracatu, “a matança de animais de duas e de quatro pernas, o arreamento da farofa e do sangue, os agradecimentos aos orixás”. Na Domingos Olímpio, as novidades levadas pelo Baobab garantiram o topo da classificação. Entre elas, uma loa genuína, alas de africanos e cenografia refinada. Era uma mistura do tradicional e do moderno. Destaque algum precisava suster na cabeça quilos de frutas de verdade. Levava as réplicas de mentirinha, feitas de plástico e bem mais leves, que lhe permitiam dançar por mais tempo e com mais graça.

“O maracatu é uma doença. Se entrou, você fica fascinado pela história. Você fica doido.” Neste ano, pela primeira vez, o Nação Baobab sai com loa própria, composta por Praxedes numa das recentes viagens. Mesmo assim, a opinião da família não muda: carnaval é coisa de louco. Da leva de filhos, nenhum integra o maracatu. Os filhos são outros. Vêm da comunidade da Bela Vista. No próximo domingo, “a gente quer montar uma coisa bonita e se orgulhar do desfile. A rainha vai ser rainha, ela passa três meses costurando o vestido dela pra ser a melhor rainha da avenida. Você vai ser um rei, mas durante uma hora tu vai ser um rei de verdade. Meu rei é um rei de verdade. E o cara mora ali, num barraco em terreno invadido.” Na Domingos Olímpio, porém, Praxedes vira curandeiro: para qualquer doença, receita maracatu. Tira o peso das costas dos seus destaques. Faz da fruta artificial um encantamento. O feitiço dura 40 minutos, o tempo exato do desfile.

Fonte: Jornal O Povo

domingo, 15 de fevereiro de 2009

3 visões sobre a cearensidade



MAIS OU MENOS DIVINO - TARCÍSIO MATOS, Escritor

Não creio seja o cearense um povo morredor. Não é qualquer furinho (ou mesmo a morte) que faz o cabra "embiocar" no fundo duma rede e amargar tristeza de querer sumir. Não digo que seja o mais confi ante em si. Apenas é diferente ao encarar o quem vem contra. Se sofrer fosse poetar, cearense figuraria como sujeito do poema de Fernando Pessoa, que diz: "O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fi ngir que é dor/ A dor que deveras sente". Engole a seco o revés e, em vez de lamentar, arrota irreverência. Nem aí pro azar. A gente se abre da situação. "Nós sofre, mas nós goza". Chova, faça sol; de barriga cheia ou colada ao espinhaço; na praia ou no sertão; seja alvinegro ou tricolor, cearense (é coisa de Deus) dá o maior valor à vidinha que tem, é solidário. A dor une, iguala todo mundo. Ri, ri de si mesmo, faz rir. Achamento de graça e fazimento de pouco é terapia. Seria cômico, não fosse trágico. Quantifi cando, tem auto-estima mais ou menos. Mas, exibe tantos atributos positivos que engana os bestas. Aí pensa, sobre a vida: ruim com ela, pior sem ela. Cearense sente o gosto em tudo, principalmente se de bem com a vida: bem empregado, de comer garantido, menino na escola... Ora, quem não quer do bom e do melhor? Entanto, se só tem tu, vai tu mesmo. Fazemos humor mesmo sem graça, mesmo sendo sem graça. É mais saudável fazer o outro chorar de rir. Há mercado promissor pro humor. Ganhamos notoriedade. O povo de fora sai daqui com a imagem de que somos todos Anysio, que confiamos à beça no taco, que problema aqui é piada, em cada esquina tem um jumento e alegria troando, que água é produto de luxo. A caricatura disfarça, mas, tanto melhor. Saber suportar, sem reclamar, é virtude. Se dor é bênção, rir consciente da difi culdade é garantir vaga nos tablados do Alto.
Tarcísio Matos é jornalista, compositor e colunista do O POVO

O CEARENSE TEM AUTO-ESTIMA... Cláudia Leitão, professora

O que leva uma coletividade ou uma nação a desenvolver o sentimento de auto-estima? Por que determinados grupos sociais parecem possuir um maior apreço por si próprios que outros? Haveria uma relação entre sentimento de auto-estima e desenvolvimento? E mais. No caso do Brasil ou do Ceará poderíamos ainda perguntar: como reaver em comunidades excluídas e ex-colônias submetidas à domesticação de suas culturas, sua capacidade de mobilização? como resgatar a auto-estima de comunidades a quem foram solapados os sentimentos de pertença e o acesso às suas próprias expressões culturais? Quando refl etimos sobre as relações entre cultura e desenvolvimento e suas repercussões na auto-estima de comunidades e nações, deveríamos, primeiramente, levar em conta o que delas foi descartado e excluído. Para isso, precisaríamos superar traumas relativos aos nossos próprios processos históricos. Como nos diz Mia Couto, o colonialismo não morreu com o advento das independências; mudou de turno e de executores. Durante décadas buscamos culpados para as nossas infelicidades e incompetências. Inicialmente culpamos os colonizadores. Em seguida, construímos imagens românticas do que fomos antes deles. Mas os colonizadores se foram e as novas formas de colonialismo se dão entre nós. Essas formas são naturalmente geridas entre ex-colonizadores e ex-colonizados. Como nos diz o intelectual moçambicano: "Vamos ficando cada vez mais a sós com a nossa própria responsabilidade histórica de criar uma outra História". Ao mantermos o mesmo modelo mental dos colonizados, perdemos nossa capacidade de pensar, criar e imaginar, limitando-nos a repercutir pensamentos alheios, cujas consequências são fatais para nossa auto-estima; ora resultam num ufanismo ou messianismo ingênuos, sempre em busca de novos colonizadores, ora em uma profunda inação diante do presente. Alternamos os seguintes discursos: "somos maravilhosos e talentosos, só necessitamos ser descobertos!"; "Somos incapazes, somos vítimas, nada podemos fazer". Esse comportamento pendular é historicamente reforçado, no campo da cultura, pelo Estado, através de ações populistas e, no campo da economia, pelas instituições responsáveis pela criação de projetos de desenvolvimento tão inadaptados e distantes de nós. Penso que, para falarmos sobre a auto-estima dos cearenses, necessitaríamos refletir necessariamente sobre nossas políticas governamentais (lamentavelmente nem sempre públicas) e seu papel na ampliação dos significados do desenvolvimento, a partir da formulação de políticas culturais. Afinal de contas, o que esperamos para dar vazão aos nossos próprios processos criativos? Já não poderíamos ter produzido uma nova matriz de desenvolvimento capaz de incluir nossas expressões culturais, nossos valores e nossos comportamentos nas redes comunicacionais que estabelecemos e nas diversas expressões de solidariedade que construímos? E, para respondermos, enfim, se os cearenses possuem ou não auto-estima, deveríamos, antes de tudo, perguntar, especialmente, às nossas elites: quem somos nós? O que excluímos de nós e o que nos falta? Por sermos o que somos, o que poderíamos ser?
Cláudia Leitão é pesquisadora do Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade da Uece e consultora na área da cultura

O POVO DO SÉCULO XXI - ADOLFO MARINHO, Engenheiro

A percepção nacional da natureza do cearense é, para nós, um forte motivo de orgulho. Somos admirados como um povo trabalhador, afeito a superar vicissitudes e que sabe compensar a falta da luz do saber com talento e a habilidade. O cearense sente-se vaidoso quando se identifi ca com os inúmeros irmãos que se tornaram celebridades: Dragão do Mar, José de Alencar, Rachel de Queiroz, Clóvis Beviláqua, Chico Anísio, entre muitos outros. Uma série de fatos históricos, porém, foi construindo o estigma da miséria, que desmerece o Ceará e constrange o cearense. Desde o descobrimento ao fi nal dos anos 80 do século passado, na história do Ceará prevaleceu a trilogia maldita. A consensual inviabilidade climática que condenava o Estado à miséria eterna. A resignação mística que servia de conforto para milhões de fl agelados pelas secas. A mendicância institucional, praticada pelos políticos, que privilegiava o clientelismo e provocava o desatino na gestão pública. O Projeto de Mudanças, liderado por Tasso, promoveu a reabilitação institucional do Estado, saneando as finanças e moralizando a administração. Com isto pode obter financiamentos de agentes internacionais para a implantação da infra-estrutura e iniciar a transformação do Ceará, de exportador de flagelados para endereço de investimentos. Após 20 anos agrada perceber que o Ceará é tratado com respeito e interesse, Brasil afora, e até no exterior. Melhoraram as condições sociais e elevou-se a auto-estima do cearense. Entretanto, ainda estamos distantes do desenvolvimento desejado, fase em que o cidadão será capaz de prover, por si, suas necessidades e será livre para decidir sobre seu destino. A inserção competitiva do Ceará na economia nacional e no mercado mundial, condição básica para alcançarmos o desenvolvimento pretendido, exige o reconhecimento do Ceará, como vocacionado para a Civilização do Século 21. Por isto revelou-se desinteressante para exploração predatória de invasores e colonizadores, e mostra-se impróprio para diversas atividades econômicas predominantes no Brasil de hoje. Nossas condições climáticas, outrora consideradas adversas, na nova ordem econômica constituem vantagens competitivas. Sol e ventos em larga escala e extensa faixa litorânea abrem invejáveis perspectivas para geração de energia limpa e renovável, para o turismo o ano inteiro e para maior produtividade e qualidade em agronegócios de culturas nobres. Acontece que a Civilização do Século XXI, também é a Era do Conhecimento, e conhecimento é fator imprescindível para a exploração do nosso privilegiado potencial natural e para o desenvolvimento do design, da nanotecnologia, da biotecnologia, da indústria cultural, da tecnologia da informação e comunicação. Ou seja, para gerar o novo espaço das oportunidades de trabalho. Pena é que neste campo vêem-se apenas iniciativas esparsas. Falta um projeto para o Ceará realizar sua vocação e afi rmar-se na Civilização do Século XXI. Aí a auto-estima do cearense estará nas alturas.
Adolfo Marinho é diretor da Faculdade Integrada da Grande Fortaleza, ex-deputado federal e ex-secretário do Desenvolvimento Urbano do Ceará (1994-1998)

Fonte: Jornal O Povo

O Boi é o totem do sertão - A cultura do caracol.

Para onde quer que vá, o cearense leva consigo uma cultura incrustada. Tão repleta de sertão que o singular revala-se esplendor. Não tem esse, segundo as andanças do pesquisador Oswald Barroso, que não carregue um Padre Cícero daqui para qualquer destino e passe invisível no entorno de onde se erigi um altar. Não pelo estereótipo ou rótulo de ferrar preconceito, mas pelo traço marcante e jeito próprio de inventar caminhos. Se é errante, é porque decide ou tem de ser. Mas feito caracol, que traz nele a casa, não se desfaz da teia de memórias que lhe garantem uma identidade e auto-estima. Oswald Barroso fala assim, porque anda pelo Sertão cearense há 30 anos. Catando conversas, vendo o boi brincar e se transfigurar em mito popular e erudito. Numa manhã de janeiro fomos ter dois dedos de prosa que se transformaram em uma conversa quase sem fim. O cenário, antes do O POVO tomar o rumo do Sertão, foi a exposição "Vaqueiros". Tão singular e marcante para a civilização daqui que virou "permanença" no Memorial da Cultura Cearense do Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. Leia a seguir trechos desse diálogo.


OSWALD BARROSO
É pesquisador da cultura cearense, escritor, jornalista, dramaturgo, mestre/doutor em Sociologia, pela UFC, e professor da Uece. Foi pesquisador dos projetos: Artesanato, Literatura de Cordel e Festas e Folguedos, do Centro de Referência Cultural da Secretaria Estadual da Cultura (Secult); das exposições Admiráveis Belezas do Ceará e Vaqueiros, do Memorial da Cultura Cearense, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura; da Comédia do Boi, Corpo Místico, Vaqueiros e Caldeirão, todos da Cia. Boca Rica de Teatro.


O POVO - Você anda pelo Ceará colhendo histórias, coisas ...
Oswald Barroso - Desde 1975 ando pelo Ceará e já fiz parte de uns seis projetos de andanças por todos os municípios e muitos distritos cearenses. Comecei a percorrer o Estado há 30 anos. O último trabalho foi o do Caldeirão das Artes, patrocinado pelo Incra. De 26 de dezembro de 2008 a 6 de janeiro deste ano viajamos por Sobral ( Lagoa do Mato), Independência ( Cachoeira do Fogo), Miraíma ( Poço da Onça) e Canindé ( Poeira da Vaca).
OP - Procuravam o quê?
Oswald - Festas de Reis e a ligação desses festejos com a vida nos assentamentos. Em Cachoeira do Fogo, tiraram o reisado completo. Brincaram do Natal ao Dia de Reis (26 de dezembro a 6 de janeiro), percorreram centenas de casas e apresentaram a brincadeira várias vezes durante cada noite. Só em prendas para o banquete de Santos Reis, arrecadaram 54 cabeças entre caprinos e ovinos, fora as galinhas, capões, frutas e outros coisa. Cumpriram a promessa toda e, no último dia, fi zeram um grande banquete com a comunidade e arredores ao som de rabecas e guitarra.
OP - Essa diversidade cultural tem a ver com auto-estima do Ceará?
Oswald - Para provar que o cearense tem uma auto-estima extraordinária e uma identidade fortíssima, basta dizer que pra onde ele vai, ele leva sua cultura. Estou falando do povo cearense, não das elites. Onde o povo cearense vai, leva a imagem do Padre Cícero, coloca um altar e desenvolve algo no entorno. Por exemplo, o seu Antonio Ferreira, da Lagoa do Mato, que é mestre de Boi de Reisado, foi ser operário no Rio de Janeiro. E lá, onde ele ia, fazia o reisado. Sempre encontrava outros cearenses que conheciam a brincadeira e que se juntavam. Pedro Boca Rica, que morou muito tempo em São Paulo e foi operário de fábrica, depois fez a vida tocando nas ruas e rádios. Foi à custa de sua cultura que ele se manteve em São Paulo, fez nome e se sustentou. Inclusive fora do Ceará, o cearense descobre a força de sua cultura.
OP - O que é o cearense?
Oswald - (risos) O cearense é uma "caba da peste". Cabra resistente à peste, a toda a diversidade. Ele é uma espécie de um brasileiro errante que traz sua cultura como um caracol, enrolada no próprio corpo. Onde ele chega deita raízes, ou como diz o Daniel Lins, deita rizomas e expande sua cultura. A cultura cearense está espalhada na Amazônia, em todo canto que ele vai, leva sua cultura. A cultura do cearense tende a ganhar espaço. Ele assimila a cultura do lugar pra onde vai incorporada a dele própria. Quando ele sai do Estado, ele muito mais leva a cultura do que assimila.
OP - Mesmo voltando chiando?
Oswald - Ele volta chiando, mas lá não chia. Ele chia aqui porque quer se mostrar importante, ganhou o mundo e se tornou um sujeito importante. Lá fora ele é identifi cado como cearense. Agora, tudo é relativo ao espaço geográfi co e cultural dessas pessoas. Quando é da classe média ou alta urbana a coisa se modifi ca. São pessoas que já não têm contato com sua cultura, que têm uma cultura cosmopolita, generalizada do mundo, globalizada, midiática. Pessoas que desprezam a cultura cearense. A cultura cearense é tão forte que resiste até a cultura ofi cial do Estado. Essa política que quer trazer para o Ceará paraísos tropicais para estrangeiros.
OP - O cearense conserva ícones?
Oswald - O cearense leva Padre Cícero para onde vai. O ícone mais forte do Ceará é o boi que é essa coisa primordial. Figura da infância, esse totem, esse animal que o cearense se identifi ca. O boi era selvagem, solto na caatinga. Não era o boi amarrado, preso dentro de uma cerca. Era o boi barbatão, solto na caatinga. E o cearense era ao mesmo tempo encarregado de dominar esse boi e cuidar dele. O Ceará é o estado mais sertanejo do Nordeste.
OP - E o Padre Cícero?
Oswald - O Padre Cícero para o povo é um grande organizador social, conselheiro, um orientador. "Meu fi lho, vá pra aquela terra que é minha. Plante batata lá que eu lhe asseguro que se você plantar, você vende. Vai dá certo, faça isso em nome da Mãe das Dores". "Meu fi lho o que você sabe fazer?" "Sei botar um reisado". "Pois vá botar o reisado"... Então Padre Cícero para o povo é isso, esse santo que primeiro acolhia, orientava e punha a mão em cima. Esse negócio de coronel é papo de historiador, sociólogo, pra escrever livro.
OP - Você fala do caçador.
Oswald - É. Essa cultura do caçador faz do cearense, do sertanejo, um sujeito muito violento e machista. Porque o boi era caçado, vivia na mata fechada, na mata virgem e o vaqueiro saia perseguindo esse boi para derrubá-lo, subjugá-lo. Isso marca a sociedade cearense, essa violência. O vaqueiro tem essa relação dúbia com o boi. Ele persegue, subjuga o boi, mas ao mesmo tempo bota o nome do boi, cuida. É uma relação de adversário, ódio e amor. Eu vejo mesmo nesses líderes comunitários, que eles tratam os fi lhos, a mulher, como quem trata um bode, um boi. É um pessoal bruto, uma cultura violenta. Mas engraçado, o Ceará nunca deu grandes cangaceiros, sempre deu grandes beatos.
OP - Pátria de conselheiros .
Oswald - Isso vem da capacidade de imaginar. Você achando tão inóspita, tão adversa a vida aqui, você imagina outros mundos. Esses santuários como Juazeiro do Norte, com uma participação popular, uma arte desenvolvida em torno dele, com uma infl uência no Nordeste inteiro, aquilo é uma coisa extraordinária. O povo cria seus caminhos, suas histórias, seus signifi cados, seus ritos. E não tem só no Juazeiro. Santa Marciana no Camocim, em Senador Pompeu tem aquela Caminhada das Almas em memória dos mortos na seca. Madrinha Dodô, que morreu um dia desses, as pessoas botam a imagem dela junto com outros santos. Morreu um dia desses e as pessoas já tinham santifi cado ela em vida. As pessoas reconhecem essas pessoas boas, que irradiam luz. Acho que é isso, é essa tentativa de criar um reino diferente, um reino encantado. Vê essa vida aqui como desencantamento. Os reis, o rei é esse esplendor que tem no Interior de cada um ou de muitas pessoas que é irrevelado. Mas que se revela numa brincadeira dessa. As pessoas sempre acreditam que um dia vai ser revelada a grandeza delas. Por isso imaginam esses reinos fabulosos. O Juazeiro como uma Nova Jerusalém. Imaginam o São Francisco lá em Canindé. Acreditam que São Francisco está lá, não é São Francisco de Assis, na Itália, é de Canindé.
OP - O Caldeirão é auto-estima?
Oswald - O Caldeirão é um projeto extraordinário de vida, sociedade e religião. Não é que lá fosse virar o paraíso. De lá, haveria no fi nal dos tempos uma ligação com o paraíso. Como o Horto ( em Juazeiro), essa teoria foi transferida pra lá. Os caminhos vão se ligar. Tudo que tem ali, só está escondido o esplendor e se revelará. O povo acredita nisso. Isso tem a ver com as religiões orientais, religiões mágicas, anímicas, politeístas.

DEMITRI TÚLIO, da Redação


CARETA FEITA DE COURO DE BODE A máscara é adereço tradicional na Festa dos Caretas do município de Jardim, no Cariri. A brincadeira acontece na Semana Santa.

Fonte: Jornal O Povo

Cabeças-chatas que brilham, divertem e inventam. Lógica, humor, criação.



Um certo pendor para criatividade e para o estudo. Diz-se do cearense ser um vocacionado para as Ciências Exatas. Bons matemáticos, físicos, projetistas de aviões, engenheiros navais de primeira, ases na medicina de ponta, brilhantes que vencem concursos estudantis dentro e fora do Brasil. Some-se a isso humor, ironia, improviso, a tirada sacana, a arte de fazer graça ou rir de si mesmo. As duas virtudes juntas são o dom da criação, a inventividade. É quando a lógica segue ao lado do incerto e cria o novo, produtivo e competitivo. É dessa junção que sai o novo rumo. Foi de uma cabeça chata que o mundo pôde enfi m confi rmar como viável a alternativa do combustível vegetal. O planeta refém do combustível fóssil não sabia como sementes, folhas e grãos, que masserados se convertiam em óleo, poderiam mover engrenagens e fazer uma máquina sair do lugar. Ainda era 1977, século passado, e o inventor cearense Expedito Parente, então um jovem promissor com menos de 40 anos, fez a descoberta transformadora. Isso num tempo do Ceará atolado num estigma miserável de seca e fome, como se aqui só tivesse penúria. Três anos depois, o invento foi aberto a todos. Tranqüilo e bem humorado, o cientista hoje tem a patente do biodiesel, uma energia limpa já em franca produção no Brasil. De 4.630 barris entre março e dezembro de 2005, a produção saltou para 5.776.196 barris até outubro de 2008. São recordes após recordes desde então. A tecnologia é cobiçada pelos principais países e um dos principais trunfos da atual economia brasileira. Modestamente, Parente também criou o bioquerosene e a vaca mecânica. Já poderia estar descansando, mas que nada. Para breve, ainda promete um outro feito surpreendente, ainda em estudos, que por enquanto não pode revelar. Nesse ritmo desbravador, usando a lógica para chegar ao desconhecido, o Ceará segue sua empreitada também fazendo nanociência. Oficialmente, já desde 2001. O nano é um pedaço bilionésimo de um metro. É quase a menor parte antes do invisível. É uma área de atuação multidisciplinar, não um ramo específi co dos cientistas. Na Física, onde está mais próspera no Ceará, estuda-se a funcionalização em nanotubos de carbono e também em gracenos (partes ainda menores rasgadas desses nanotubos). "Isso tem propriedades condutoras, com perspectivas boas para a eletrônica usando o carbono e não mais o silício. No futuro, teremos transistores menores", explica o doutor em Física Antônio Gomes de Sousa Filho, da Universidade Federal do Ceará (UFC). Há projetos também em Farmacologia, Química, Engenharia Química. "O que a gente faz aqui está no nível do que se faz no país inteiro", garante. Há perspectivas diversas a partir da ciência do Ceará. Na arte de fazer navios, o estaleiro cearense disse e fez como construir embarcações de médio e grande porte com a técnica do casco montado de cabeça para baixo. Parece pouca coisa, mas o tempo de feitura de um navio cai à metade. O casco já é desvirado dentro d´água após a solda. Até então, ninguém ousara isso. A qualidade da indústria naval cearense é reconhecida mundialmente, inclusive na confecção de frota bélica para a Marinha brasileira e de países africanos. Há pouco mais de um mês, um navio-patrulha completo foi entregue à Marinha da Namíbia. No calendário dos grandes feitos da ciência local, dia 2 de outubro deste 2009 a menina Vitória Shéryda Sousa dos Santos completará 10 anos. O detalhe: ela foi a primeira bebê de proveta nascida no Estado. De lá para cá, entre as técnicas da inseminação artificial e da fertilização in vitro, só numa das três clínicas locais já foram mais de mil novos cearenses. Se antes precisavam de 100 mil espermatozóides para o processo de fecundação, hoje, segundo os médicos Evangelista Torquato e Fábio Eugênio, autores da façanha, pode-se retirar e trabalhar com apenas um. Com resultado satisfatório. "Antes, pela nossa cultura machista, a mulher vinha sozinha à clínica. Hoje, o marido acompanha na consulta". Evoluímos, continuamos aprendendo. Para onde iremos, em qual oceano digital navegaremos, é a formação atual que dirá. A educação tecnológica avança com a mecatrônica, a telemática, a computação, mas também forma novos gestores ambientais. O mundo técnico e virtual se aproxima do real, do que ainda pode ser resgatado dele. Até 2010, o Instituto Federal do Ceará (nova denominação para o Centro Federal de Educação Tecnológica) terá 12 unidades no Estado e mais 10 unidades de extensão satelizando o ensino em todas as regiões cearenses. No total, previsão de 21 mil alunos aprendendo o que fazer com nosso futuro e a se relacionar com o meio. Em breve, o Ceará também terá a maior rede de inclusão digital do governo federal, através de centros espalhados por rincões. Lugares onde nem se esperava progresso terão laboratório de informática, bibliotecas multimídia e até ensino por videoconferência. Para o reitor do Instituto Federal, Cláudio Ricardo Gomes de Lima, "se o Ceará não foi tão aquinhoado com alguns recursos naturais como em outras regiões, nosso grande patrimônio é a inteligência. É nossa moeda intangível". Iremos além.

Claudio Ribeiro, da Redação.


DA CAJUÍNA. O caju, fruto típico do Ceará, é comum no sertão e no litoral. Acauy vem do tupi-guarani e significa anos. Segundo o padre Ágio Augusto, no livro O cajueiro - vida, uso e estórias, os índios costumavam contar a idade tomando como base a safra da fruta.


TUDO COM TAPIOCA. A goma, um dos derivados da farinha de mandioca, é herança do índio do Siará Grande. É dele a "receita" da tapioca. Na culinária cearense a farinha vai ainda na peixada da água grande, com a carne de sol e feito paçoca.

Fontes; Jornal O Povo e Google Imagens

A liberdade aconteceu ali - À sombra do tamarineiro



Pioneirismo. Na praça principal de Redenção, no maciço de Baturité, a 66 quilômetros de Fortaleza, o modesto monumento Rosal da Liberdade indica um dos mais importantes momentos da história do Brasil. Ali, no dia 1º de janeiro de 1883, à sombra de um tamarineiro, aconteceu a grande festa cívica que tornaria Redenção a primeira cidade do Brasil a libertar seus escravos. A poucos metros do Rosal da Liberdade, ao lado da praça, um prédio tombado pelo município abriga a Escola de Ensino Fundamental Padre Saraiva Leal. No local, a placa explica que, no lugar, se reuniam os abolicionistas dos movimentos Sociedade Libertadora do Aracapense e Sociedade Redentora Aracapense. Isso porque, antes, Redenção se chamava Acarape. Naquela época o movimento abolicionista tomava conta do Brasil, mas foi Redenção a primeira cidade a libertar seus escravos com a ajuda de ilustres abolicionistas, como José Liberato Barroso, general Antônio Tibúrcio, padre Guerra, Justiniano de Serpa, José do Patrocínio e João Cordeiro, que presenciarem, naquele 1º de janeiro, a alforria dos 116 escravos da Vila do Acarape. Mais alguns passos adiante e já se está na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Imaculada, onde é guardada como relíquia a pia batismal de irmã Clemência de Oliveira. Filha do município, ela está em processo de beatificação pelo Vaticano. Em Redenção, por onde se anda, o cheiro é de história. Não no sentido de coisa velha, ultrapassada. Mas na perspectiva de que se construa o futuro sem os erros cometidos no passado. Mais agora, com a instalação prevista, para início de 2010, da Universidade Federal de Integração LusoAfro-Brasileira (Unilab). A chegada do equipamento na região acontecerá justamente pelo simbolismo de ser a primeira cidade brasileira a abolir a escravatura. Entre os jovens, mais até do que o aspecto histórico, a chegada da Unilab representa principalmente a possibilidade da cidade ganhar mais importância e atrair a modernidade com a oferta de ensino superior na região e contribuir de forma estratégica para o fortalecimento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Já se fala com otimismo da revitalização do comércio, da chegada de shoppings e de novos empreendimentos para atender a demanda dos 5 mil estudantes previstos quando a universidade vir a funcionar. Enquanto o projeto não se efetiva - não foi definido ainda o terreno onde a Unilab será instalada - a população de Redenção se alimenta da história e das tradições que formaram seu povo. Não só a praça principal serve de referência para o fortalecimento dessa cultura rica em simbologias. Pertencente a antiga província de Baturité, quando ainda se chamava Acarape, a cidade teve como seus primeiros habitantes os índios tapuias, que vieram de Jaguaribe para habitar as margens do rio Pacoti, que corta a região, formando-se então uma pequena comunidade que vivia da pesca e agricultura. Depois começaram a chegar alguns negros africanos que desembarcaram no Mucuripe e se espalhavam por muitos municípios do Ceará. Conta a história que este foi o primeiro núcleo de povoação para o surgimento do município. Parte disso pode ser contado no Museu Senzala Negro Liberto, instalado na Fazenda Engenho Livramento, de 1750. Ainda hoje o lugar abriga a fábrica de cachaça Douradinha. Nas instalações, os visitantes conhecem desde o processo de fabricação rudimentar do produto as instalações da casa grande preservada desde o século XVIII. Mas também revisitam o cativeiro degradante dos escravos com todas as características originais da época escravocrata, para que nunca mais a humanidade seja submetida a tal situação. Por tudo isso, em Redenção, seu povo pode se orgulhar. Afi nal, a liberdade aconteceu ali.

LUIZ HENRIQUE CAMPOS, da Redação

Fonte: Jornal O Povo

Do provincialismo ao universalismo - O complexo de Jaburu



DEMITRI TULIO - Da redação

Após carta enviada pelo economista Cláudio Ferreira Lima, autor de A Construção do Ceará - temas de história econômica, decido por onde começar o texto. Aceito a provocação do pesquisador e me demoro, olhos ruminantes, na leitura de Retratos do Brasil - ensaio sobre a tristeza do brasileiro, de Paulo Prado; e da deliciosa crônica Brasil brasileiro, de Paulo Mendes Campos. De coisas em comum nos dois textos uma citação, da autoria de Capistrano de Abreu, concebe o ponto de partida. "O jaburu é a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste d´aquela austera e vil tristeza". O trecho, que é parte de uma missiva enviada no século passado por Capistrano ao historiador luso-brasileiro João Lúcio d´Azevedo, entrou na crônica de Paulo Mendes Campos como exemplo de um malogro superado pioneiramente pelo povo paulista. "Para Capistrano, o jaburu simbolizara o Brasil; São Paulo foi o primeiro a superar a tristonha fase jaburu", ressalta o cronista mineiro. "E o Ceará, será que já deixou de ser jaburu?", instiga Cláudio Ferreira Lima. As hipóteses ou respostas de "sim" ou "não" deixo para o leitor formular e discutir com quem está ao seu lado. Enquanto isso, chego ao texto Precisa-se de Ceará - resultado de conferência entabulada por Gilberto Freyre no ano de 1944, em Fortaleza. Aqui, o estudioso da brasilidade ressaltou que o País necessitava do provincianismo e do universalismo do cearense. Para Gilberto Freyre, "nenhum brasileiro é mais cosmopolita (que o cearense). As anedotas chegaram a exagerar esse pendor do cearense; a caricatura chegou a fazer dele um cigano ou judeu brasileiro; a lenda chega a salpicar de cearenses ricos ou a caminho de riqueza, não só Nova York e Londres, como no próprio Oriente". Há mesmo essa errância, talvez por causa das secas ou espírito de arriscar mundo afora. A seca que, na visão de Rodolfo Teófi lo, historicamente sempre foi maldição menor frente "a inépcia e má vontade dos homens que dirigem a Nação e a falta de patriotismo de nós cearenses. Não amamos nossa terra como deveríamos amar. Sacrificamos o bem público aos interesses da politicagem". A alfi netada, de uma contemporaneidade perene, fora endereçada ao escritor e deputado geral José de Alencar. Rodolfo, que repetia que era cearense porque queria, não poupou o momento jaburu do idealizador do primeiro cearense - Moacir. "Em 1877, Fortaleza estava cheia de retirantes e o presidente da Província, desembargador Estelita, pedia socorros ao Governo Geral. Funcionava o parlamento e um de nossos representantes, Alencar, com o prestígio de seu nome, afi rmava à Nação que havia exagero nas notícias transmitidas pelo governo do Ceará sobre a seca, `pois os invernos em sua terra começavam em junho'.", ironizava Rodolfo no ensaio A seca de 1915. Ele, farmacêutico que enfrentou no braço batalhas a exemplo da epidemia de varíola (1877), de matar mil pessoas por dia em Fortaleza, diagnosticou que o cearense tinha sido dotado de uma "resistência orgânica assombrosa para que pudesse enfrentar as secas" e ainda sobreviver à tirania das politicagens nefastas. A essa resistência, segundo Cláudio Ferreira Lima, também se pode chamar de auto-estima. Sentimento contrário a inércia que obriga até hoje o cearense a buscar ser feliz e abandonar a caduca e incômoda imagem de povo subjugado, de mão sempre estendida. Para o economista, no Ceará precisa-se cada vez mais da sobralidade dos sobralenses, do empreendedorismo dos caririenses e da irreverência do fortalezense. A construção do Ceará, expõe Ferreira Lima em seu livro, está ligada desde sua origem à resistência e formas de reinventar o cotidiano da tribo, da vila, da capitania, da província e do Estado. Foi assim quando o Ceará foi relegado a loteamento de Pernambuco, quando Portugal decretou a Guerra dos Bárbaros, quando se introduziu a pecuária e se inventou as charqueadas. Quando se viveu a era do algodão, quando o Conselheiro concebeu Canudos e quando se lutou pela Confederação do Equador... "São muitas as idas e vindas nessa construção histórica. Tivemos um Virgílio Távora, idealizador do primeiro planejamento do Estado, do início da industrialização, e um Governo das Mudanças que virou exemplo de auto-estima e estudo no Massachusetts Institute of Thecnhology (Judith Tendler)", conta o economista. É certo, avalia Ferreira Lima, que o Ceará ainda convive com um paradoxo histórico da desigualdade social e que a população menos favorecida na maioria das vezes caminha a reboque dos interresses das elites de seus tempos. Condicionante que mexe com a auto-estima de qualquer povo. Somos, para afago do ego nacional, a terceira capital mais importante em influência urbana do País (IBGE-2007). Mas, a exemplo da administração colonial -quando havia concentração na distribuição de bens (terras), ainda continuamos tendo de ajustar a divisão da nossa felicidade interna bruta. (Colaborou Thiago Cafardo)

"Sou cearense porque quero"
Rodolfo Teófilo, farmacêutico.

Fonte: Jornal O Povo

A auto-estima do cearense



O simbólico, o imaterial, o ambiente também dão conta da auto-estima cearense. Um exemplo é o trabalho de Carlus Campos, na capa desta edição, o primeiro fragmento de um painel que se constrói ao longo de todo projeto gráfico da série, que vai até 15/4.

Porque somos Cearenses - O espelho de Capistrano

A auto-estima do Ceará estaria ligada aos processos que deram na formação do que a história chama atualmente de povo cearense? Afinal, apenas alimentamos estereótipos perenes ao tempo ou, verdadeiramente, possuímos uma diversidade cultural que nos faz ter auto-estima? Sem pretensões de respostas definitivas e certezas absolutas, visitemos João Capistrano Honório de Abreu. Começamos a conversa com ele - esse cearense de Maranguape (1853-1927), mestiço, e um dos mais importantes "intérpretes" da origem do Brasil, a exemplo de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Mário de Andrade. Segundo o historiador Arno Wehling, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Capistrano de Abreu foi um dos pesquisadores que mais lucidamente esquadrinhou o "caráter nacional brasileiro" ou o conjunto de características que defi niam o brasileiro do século XIX. Quatrocentos anos de desenvolvimento histórico, anotou o cearense, deram num traço "distinto de outros tipos nacionais e daqueles que lhe deram origem". Arno Wehling, em um texto da revista Trajetos/2004, publicação do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que Capistrano concebeu o caráter nacional forjado de forma "significativa, mas não exclusiva pela ação da natureza e da raça através da aglomeração de populações distintas. A sociedade colonial assim formada reagia, por sua vez, contra aqueles condicionamentos, tornando-se, no Brasil, a principal modeladora do caráter nacional". O jeito de enxergar do cearense se opunha ou se alinhava, na época, às idéias de outros pensadores sobre a origem do brasileiro, nacionalidade e consciência provincial. Eram tempos de intelectuais como o escritor carioca Sílvio Romero, que admitia a mestiçagem e atribuía maior infl uência à presença do negro. Dos românticos - feito José de Alencar - que puxavam brasa para os índios e os lusófilos, a exemplo de Pereira Barreto, que tinham certeza do DNA dominante dos portugueses. Havia também aqueles que apostavam no equilíbrio entre o nativo, o português e o preto. Com Sílvio Romero, Capistrano de Abreu travou uma polêmica pública. Foi em 1876, através das páginas do jornal O Globo. Romero defendia que o que havia de negativo no caráter brasileiro e, conseqüentemente o atraso do País, tinha origem na natureza e na raça. Particularmente não por causa da mescla com o tupi, sobretudo devido a herança genética do sangue do africano primitivo. "Logo o que notardes de diverso entre o brasileiro e seu ascendente europeu, atribuí-lo em sua máxima parte ao preto. Chegamos, pois, a uma fórmula que podemos exprimir assim: brasileiro=português+negro", transcreveu e ironizou Capistrano de Abreu. Para o cearense, que também morou em Recife e depois no Rio de Janeiro, a hipótese de Sílvio Romero era fraca de argumentação. A mistura das raças era um caráter a se considerar, mas de forma secundária, pois, positivistamente falando, era "difícil explicar estes fatos pelo cruzamento com o preto". De acordo com o historiador carioca Arno Wehling, Capistrano de Abreu, ao contrário de Romero, entendia que a sociedade da época da colônia brasileira, "esmagada pela rarefação, pelas difi culdades de comunicação, pelo transplante precário das instituições portuguesas, ou seja, por uma combinação de fatores naturais, tornara-se atrofiada, incapaz de ação social vigorosa". Uma sociedade com traço de "indolência", mas, segundo Capistrano, também capaz de demonstração de reação. Sinal disso, na época da colônia, era a presença dos colégios jesuítas, da introdução da cultura de criar gado no sertão e da resistência contra o invasor francês, holandês e o próprio português. Para o historiador Robério Américo Souza, da Universidade Federal Fluminense (UFF), o cearense Capistrano de Abreu, ao se lançar na investigação sobre o destino do povo brasileiro ocupando o sertão, "almejava não apenas a satisfação de uma problemática histórica. Mais que tudo, buscava subsídios, fontes, para compreender a si mesmo, sertanejo, caboclo matuto, de origem modesta e rude. Sua investigação era, então, movida por interesse pessoal, mas nem por isso menos legítima" e carente de paixão. Pelo legado histórico deixado por Capistrano de Abreu, arriscamos escrever que o maranguapense é um dos precursores na inquietação e investigação de caminhos que também são elucidativos na pesquisa sobre a formação da auto-estima cearense e do multifacetado povo brasileiro. Capistrano, segundo a historiada Rebeca Gontijo, da UFF, iniciou o projeto de escrever sobre a história do Brasil quando ainda estava no Ceará. Lugar onde garimpou material sobre os cotidianos da província, as secas grandes e o modo arrastado de como a capitania foi povoada no período colonial. O Siará Grande que ficou à mercê da vontade do donatário Antonio Cardoso de Barros de vir colonizá-lo. Caspistrano de Abreu não escreveu uma narrativa completa sobre a História do Brasil, obra tão esperada pela intelectualidade dos oitocentos. Mas deixou capítulos preciosos de uma história que, segundo o método dele, se faz em espiral. Em artigo da revista Trajetos, Rebeca Gontijo explica que para o cearense "sempre faltava um documento, tornando-se necessário retornar periodicamente ao mesmo ponto, a fim de tentar corrigi-lo. Daí a impossibilidade de contentar-se com qualquer conclusão". Para além dos documentos e conclusões, anote-se ainda os imaginários coletivos, a diversidade (cultural) cearense e as fronteiras móveis da história que são empurradas pela dinâmica dos cotidianos de cada tempo. Experimentamos a idade do couro, concebemos o Caldeirão, estamos aprendendo a conviver com as secas e quem sabe - caminhamos para a reinvenção da roda movida a energias limpas e cidades digitais.

EDITORIAL - O que será que será

DEMITRI TÚLIO da Redação.

Uma construção? Um conceito? Um estado de espírito? Estamos falando da auto-estima do cearense, algo imponderável, pouco pesquisado, mas que não dá para não discutir. Será que ela reside no pioneirismo(?), que atravessa a história e vai da libertação do escravos à invenção do biodiesel? São muitas as questões. E nós vamos atrás das respostas. Produzimos até um projeto -AutoEstima Cearense - saído da cabeça do diretor de Projetos Especiais do O POVO, jornalista Cliff Vilar, que prevê uma série de ações ao longo primeiro semestre de 2009. A idéia é se debruçar sobre a temática até então pouco explorada. "As informações que dispunhamos eram empíricas", diz Cliff. O primeiro passo foi a contratação de uma pesquisa, que ficou a cargo do Instituto Gerp de Pesquisa Estratégica. O objetivo: levantar aspectos ligados à auto-estima do cearense, que pudessem subsidiar o desenvolvimento de uma campanha publicitária, associada a uma marca forte, enaltecendo a essência do povo cearense. A pesquisa quantitativa, com entrevistas por telefone e pessoalmente, foi realizada de 15 de outubro a 24 de novembro de 2008 em um universo de 865 pessoas, distribuídas por todo o Estado, com margem de erro de 3,40 pontos percentuais. O resultado apontou que o cearense, apesar de todas as adversidades, é um povo de elevada auto-estima. De posse dos resultados da pesquisa, foi montada uma estratégia visando a propagar esse sentimento entre os cearenses através de diversas ações, procurando enxergar o Ceará como um todo. Uma das ações é publicar de três cadernos especiais nos meses de fevereiro, março e abril, destacando os vários aspectos que envolvem essa temática, a gênese, o conceito, as pessoas, o patrimônio material e imaterial, as histórias que são defi nidoras do espírito cearense. O primeiro especial é o que lhe chega agora às mãos. Nos próximos meses, como parte das ações previstas pelo projeto, estão o lançamento de um site e da eleição de uma marca que identifi cará esse espírito "cearensês". Além disso, para o debate está prevista uma série de debates na TV O POVO, assim como um concurso de redação. Como diz Cliff Villar, a intenção é envolver faculdades, entidades empresariais, sindicatos, associações..., na busca de fortalecer essa tal da auto-estima do cearense.

Fonte: Jornal O Povo

Um canal de divulgação da politica, esporte, cultura e história do Ceará e do Nordeste.

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