sexta-feira, 17 de abril de 2009

As memórias de Otacílio Azevedo fazem um desenho dos espaços de Fortaleza, suas ruas e construções


Otacílio de Azevedo (1893-1978) foi testemunha de um tempo. Caminhou nas passeatas em repúdio aos atos da política de Antônio Pinto Nogueira Acióli (O POVO opta pela grafia original do livro do memorialista) que, dias antes, “investira contra algumas crianças, esmagando-as sob as patas de seus cavalos”. Enquanto a cidade estava em rebuliço à caça do velho oligarca, o Babaquar (como era conhecido o presidente do Ceará) foi encontrado na casa de seu filho, na rua Guilherme Rocha, metido debaixo da cama. “Intimado a levantar-se, encostou-se a num canto do quarto, lívido, os olhos cheios de lágrimas”, narrou Otacílio. O povo pedia vingança e justiça. Ao ver aquela ruína humana, acovardada, esqueceram-se da vingança, ficaram só com a justiça. “O deposto agradeceu-nos, comovido, o fato de o deixarmos com vida”, diz o relato com a versão do memorialista.

São muitos os atributos: Otacílio de Azevedo foi pintor, desenhista, poeta, mas é a faceta memorialista que nos interessa para essas páginas de jornal. Com mais de uma dezena de livros publicados, o pai do também memorialista Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, faz um inventário da Fortaleza que acompanhou a partir de 1910, vindo da cidade de Redenção, para trabalhar nas oficinas da empresa Ceará Light Tramways and Power Cia Ltda. Narra, no livro Fortaleza Descalça, os episódios com as minúcias de quem os viu de perto, tanto dos fatos como da arquitetura da cidade. A Fortaleza de Otacílio era moça pobre, mas vaidosa, com o eterno espírito de colonização. “Ensaiava os primeiros passos nos caminhos do comércio internacional, passando da renda da almofada para as rendas francesas”.

O desenho do Centro
Ele desliza pela Praça do Ferreira para descrevê-la com seus cafés em cada ponta, iluminada por combustores de gás carbônico; pela avenida Marquês de Herval, hoje Praça José de Alencar, lugar ajardinado, perfeito para passeios de famílias inteiras e o Passeio Público.

Os contos históricos ganham uma narrativa pessoal e são unidos com os causos de dia-a-dia. A inauguração do Theatro José de Alencar, em 17 de setembro de 1910, é um dos feitos em que foi participante ativo. Encomendou um paletó, pago em várias prestações. A peça encenada era O Dote, de autoria de Artur Azevedo. Ele viu da torrinha, o lugar da ralé.

O Café e o bonde
Ele viu uma linha de bonde quase ruir por conta de um bar que foi fechado, o Café do Pedro Eugênio. Ele ficava na segunda seção da linha do Benfica e era abrigo certeiro de intelectuais boêmios: “O proprietário morava vizinho e, quando aparecia altas horas da noite um bando de seresteiros, levantava-se e ia abrir o estabelecimento a fim de servi-los com a melhor aguardente de cumbe”. Quando o bar foi vendido, o outro dono não deu conta do recado e a linha do bonde do Benfica começou a decair. O dono da Empresa Ferro Carril recomprou o bar e pediu que Eugênio novamente tocasse o negócio: o fato foi certeiro e a linha foi recuperada.

Frequentador assíduo dos cinemas e cinematógrafos do Centro, Otacílio tinha no Cinematógrafo Júlio Pinto, na rua Major Facundo, o preferido. As fitas mudas eram acompanhadas por verdadeiras orquestras sentadas sobre madeiras grossas que cobriam, com toda a pompa, uma cacimba: flautista, violinista, pianista e até um rabequista. “Tempos depois, apareceu um aparelho com o sistema vitaphone”, moderníssimo para a época. O som, gravado em discos, começava a rodar no momento do início da fita. Quando quebrava, era preciso contar os quadros perdidos e intercalar pedaços de fita preta. “Uma fita já bastante avariada foi levada à tela. Como não houvera substituição dos quadros avariados, no melhor momento do idílio, a bela estrela começou a falar com a voz de homem e o fogoso fala com voz de contralto”, conta. Nem é preciso narrar a chacota feita pelos presentes.

Fonte: Jornal O Povo

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