domingo, 15 de março de 2009

Juazeiro do Norte - O vale encantado da salvação


Assim reza a lenda. Porque rezar é da fé cristã e lenda é por onde os índios também creem. Diziam os índios Kariris que onde hoje está Juazeiro do Norte já houve mar ou ele está apenas guardado debaixo do chão massapê, mole e fértil para o roçado. Por que não acreditar, se estão aí a ciência e os olhos a comprovar, pelos peixes petrificados e fossilizados, pelo relevo de Chapada indicando outros tempos líticos do vale, ou pela própria lenda?. Teriam sido os invasores que sumiram com o mar, dominadores estrangeiros que dizimaram o povo índio em outros tempos.

Pois os Kariris acreditavam nesse mar e numa serpente que vivia nele. Uma deusa deles. Falavam ainda os índios que um dia a Pedra da Batateira - outro marco desse mundo fantástico - se soltará por causa da deusa serpente e haverá uma grande inundação na região. Um dilúvio no Cariri. Os maus (os invasores) morrerão e os índios voltarão a viver em paz no paraíso que é o mundo Cariri.

Aí a lenda mudou. Contam os romeiros que foi o padrinho deles, o Padim, o Patriarca do Sertão, o padre Cícero Romão Batista, que conseguiu acorrentar a Pedra da Batateira sob a proteção de Nossa Senhora Mãe do Belo Amor. Que a santa, oferecida por missionários aos índios como devoção nos tempos da colonização, estaria segurando a pedra e o dilúvio a pedido do Padim Ciço. E então a terra do Cariri se fez um lugar de salvação, chão santo. O romeiro, herdeiro do índio nordestino, teve medo da grande inundação. E se salvará quem estiver no alto da serra do Catolé, que é o nome antigo da colina do Horto, onde está agora a estátua do Padre Cícero. O relevo da região tem 1,5 bilhão de anos, tão anterior a nós quanto a lenda. O conto dos índios misturou-se com a história de Noé, do Antigo Testamento, e deu em Padre Cícero.

E desde então, a partir da fantasia mítica dos Kariris, junta gente nas romarias para ir agradecer a Cícero, o padre que querem santo. É assim que a pesquisadora belga Anne Dumoulin, que estuda a Psicologia da Religião, conta o que aprendeu e ainda descobre da história de Juazeiro do Norte. Depois de 34 anos morando na cidade, Anne virou irmã Annete, voluntária da Pastoral das Romarias, que se fascina ao ver 2,5 milhões de romeiros por ano numa cidade. Lugar que tinha apenas 30 casas e uma capelinha (Nossa Senhora das Dores, hoje basílica) quando o jovem padre Cícero chegou vindo do Crato e não mais largou.

Não é possível dizer se o desfecho da lenda dos Kariris aconteceu ou acontecerá um dia na Grande Nação do Povo Cariri, que hoje emenda Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas e quem mais chegue à Nação Romeira. Se o mar vai virar deserto e o deserto afundará, como cantarolava Luiz Gonzaga, outro tradutor das causas sertanejas. É pelo menos um ponto de partida para entender tudo ali.

Irmã Annete prefere afirmar que, mesmo antes de toda a influência do Padre Cícero, o Cariri já é por si só um espaço mítico, mágico, sagrado, encantado, de mistérios e certezas. E não são lendas mortas, ainda perduram, se sustentam. Ela pede que não considere mito como algo pejorativo, mas da construção de um povo. "Aqui é um vale fértil no meio do Nordeste. E isso facilitou a crença, o desenvolvimento de uma mística no Interior". Existem os povos Maias, Astecas, Incas, assim como existe o povo Kariri.

Juazeiro do Norte é então a capital da Nação Romeira Cariri. Cícero virou o padrinho, entrou na família, a imagem é a primeira que adorna e protege a sala da casa. É a raiz dessa cultura. Virou pajé, conselheiro. É o nome escolhido para o filho, a filha, nome de borracharia, de hotel, lanchonete, avenida, fazenda, salão de beleza, farmácia, padaria, a Cicerópolis. Ainda não é nome de igreja, mas já é padroeiro.

O filho cratense de seu Joaquim Romão e dona Quinô fez da Juazeiro a terra onde a Igreja Católica Apostólica Romana ficou mais brasileira, popular. Deu progresso e deu oração. Diz o padre José Venturelli, italiano, administrador do Horto que "Deus realizou uma emoção religiosa tão forte na região que podemos dizer que Padre Cícero foi o maior evangelizador do Nordeste". Em Juazeiro está-se mais perto do céu, da Mãe das Dores e da salvação econômica.

Hoje também já se vai à cidade em busca de outro saber além do espiritual. Há faculdades, centro tecnológicos, fábricas, empregos. "Juazeiro agora está mudando. A atual é uma Juazeiro universitária. Há bairros só de professores e estudantes, que não vêm pelas romarias ". Não é bom, não é ruim, é uma nova realidade.

Conta irmã Annete: "Vocês querem entender como é a autoestima desse povo? Alguém me contou a história de um romeiro de Recife, que tinha um carrinho e um carrão grande bateu no carro dele. E o homem foi logo falando: "Você não sabe dirigir, como é que pode?". E o do Fusca disse "mas a culpa é do senhor, o senhor que bateu no meu carro. Não fiz nada". Aí o do carro grande falou "O senhor não sabe com quem está falando? Eu sou fulano". E o rapaz do Fusca respondeu: "O senhor é que não sabe com quem está falando. Eu sou afilhado do meu padim Ciço". Tem também a história da mulher que disse "Eu não sou ninguém, mas com ele, Padre Cícero, eu sou alguém". É a dignidade que ninguém dá.

NOTINHAS SOBRE JUAZEIRO

- O único roçado ao lado do Horto e da estátua do Padre Cícero é de seu Nobrelino de Freitas Marques, 74. Tem a bênção e o trabalho. Planta milho, feijão, melancia, gerimum. Aproveita a primeira chuva do Ceará, que sempre cai antes no Cariri. Colhe antes de todos. Pai de sete filhos, um deles autodidata que faz avião e helicóptero de madeira. Oração é em casa. Ensina: "a reza só voga se o cabra rezar com sentido em Deus". E diz sua fé: "Enquanto vida tiver, eu trabalho na minha terrinha".

- Qual o caminho do romeiro, logo que chega a Juazeiro? Vão à igreja de São Francisco. O costume é dar três voltas na estátua do Padim no centro do templo. É a saudação da chegada à romaria; b) Vão se instalar nos ranchos; c) Outro costume, na madrugada seguinte vão para o Horto. Por 6 km de trilha, chegam ao Santo Sepulcro, onde se penitenciam entre pedras, grutas e na capelinha. d) Depois, às cinco, visitam o casarão, Museu Vivo do Padim e a capela do local. e) À tarde, vão para as outras igrejas e gastam no comércio. f) No dia da ida, dão mais três voltas na imagem da igreja de São Francisco, para proteção da viagem.

"O que eu mais gosto em Juazeiro é do meu Padim Ciço"
(Joaquim Santos Rodrigues, "Seu Lunga", comerciante)

Fonte: Jornal O Povo

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