quarta-feira, 14 de maio de 2008

A idéia de cearensidade

Complicado trabalhar com a idéia de cearensidade.
Estamos sempre a um passo do reforço do estereótipo.
Sem querer ser pedante, lembro Barthes quando falava que um tomate, um pimentão e um pacote de macarrão significavam a italianidade.
Encontramos a arabidade na novela O Clone. A brasilidade estaria no carnaval e no futebol, na feijoada e na caipirinha?.
O estereótipo como fôrma, o molde da oficina tipográfica passou a ser a construção ideológica por excelência. É o que não se questiona.
Ganha foro de verdade absoluta, se impõe como tal.
E o que seria cearensidade?

A leitura de uma bibliografia básica, que passa por Raimundo Girão, Parsifal Barroso, Sílvio Júlio e Gustavo Barroso, dentre outros nos dá alguns balizamentos.
O cearense seria assim. O Ceará é assim. No Ceará é assim.
E como seria este Ceará?
Determinado, forte, irreverente.
Não seriam estas características de todos os povos, inerentes à condição humana?
A publicidade se apropria com muita competência destes estereótipos.
É fácil trabalhar com eles, os resultados são previsíveis e o que se visa a atingir é quase sempre alcançado.
Trabalhamos com a habilidade cearense. E seria cegueira fechar os olhos a esta constatação.
Melhor talvez do que insistir no reforço ao que parece óbvio demais, que se busque compreender esta habilidade como sendo uma estratégia de sobrevivência de um povo sem muitas alternativas, que teve no algodão o único ciclo econômico de certa expressividade e que precisou vencer condições sempre muito adversas.
Daí a explosão criativa do feito a mão.
Daí a criatividade que irrompe, reciclando materiais, inventando o que não poderia ser inventado.
Estamos no campo da cultura se sobrepondo à natureza. Não que sejam dicotômicas, mas dialogam e desse diálogo vem uma riqueza que passa pelo tear que o fio vai alimentar; pela palha que se transforma em chapéu; pelo charque de outro ciclo, o do gado, que vira paçoca, enfim, pelo que se transforma e se cria.
Passamos do utilitário para o estético propriamente dito.
Não que o utilitário não possa ser estético. Do contrário, o que dizer dos caçuás, dos pilões, das redes de travessa dos tremembé?
Mas de um estético que ultrapassa as limitações do uso e se inscreve na categoria do simbólico, se reforça de significações, atinge outros níveis ou patamares.
Tudo isso é Ceará.
O apelo publicitário se imbrica com a propaganda institucional do turismo.
Temos praias paradisíacas, só que se esquecem de falar na grilagem, do que foi feito em nosso litoral, das máquinas que devastaram as casas de taipa e palha do que hoje é o Porto das Dunas às construções perversamente geminada do Cumbuco.
Para ficarmos com dois exemplos bem próximos do nosso quintal.
A recusa ao estereótipo passa pela negação do pronto e acabado e insiste em outras angulações, relações de causalidade, nexos que não parecem tão evidentes.
Que fique bem claro que não se trata de negar o Ceará, de tirar a importância de nossa gente e do que ela faz.
Antes, este processo de desmontagem é profundamente respeitoso para com a terra e com o povo que nela vive.
Por que aceitar sem contestação o que nos vendem?
Nosso nomadismo é marcado pela dor, pela perda e quase sempre se traduz em volta.
É um exílio a que somos forçados pela concentração da renda, pela questão da terra e pela força das oligarquias que se travestem, assumem outras conotações, mas não perdem o controle da situação.
Vivemos um exílio interior. Exílio que vem da consciência de não pertencermos a coisa alguma, por conta da condição de cidadãos de segunda classe que tentam nos impingir.
Somos responsáveis pelos problemas de São Paulo porque vamos pra lá trabalhar na construção civil, como porteiros de prédios e peões de tantas obras.
De Paulo Francis a seu clone ou reencarnação Diogo Mainardi, com seu livro Polígino das Secas, somos tratados de modo desrespeitoso.
A recusa ao estereótipo implica em lançar outras luzes, em abrir outras pistas e em enriquecer a discussão.
Somos assim e assado. Somos isso e aquilo. Somos um e somos todos.
É difícil classificar gente, criar categorias para o intangível. É autoritário o esforço de rotular. Autoritário e empobrecedor.
Como é reducionista o esforço de dividir tudo em sertão / serra e litoral.
E daí? Como se isso explicasse fundo o que somos, onde queremos chegar, o que sonhamos construir.
Superar o estereótipo é retirar máscaras que não servem a nada. A face desnuda nem sempre é interessante ou atende às expectativas que se criaram em torno dela.
Superar o estereótipo é aceitar o desafio de começar tudo de novo, apagando os preconceitos tão arraigados, arquivando clichês, frases feitas, lugares-comuns e bordões.
Este desafio é uma empreitada difícil e depende do esforço de muitos, num tempo de longa duração.
O lançamento de BONITO PRA CHOVER é apenas um ponto de partida, uma senha para a eclosão deste movimento.
Envolveu vinte e seis autores, comprometidos com o Ceará, com o rigor da academia e com a criatividade para a produção de textos prazerosos, densos e sérios.
Mas tudo é muito mais complicado do que organizar e publicar um livro.
Os estereótipos insiste, se insinuam pelas frestas, deslizam pelos textos e se reforçam no nosso cotidiano.
Muitas vezes os reproduzimos sem nos darmos conta.
O que acontece com piadas de português, o ridículo a que submetemos homossexuais, o rancor contra os negros, a misoginia que não se assume e o apagamento dos índios, por exemplo.
A teoria do sincretismo, por mais simpática que seja, não dá conta de tudo. Fácil demais dizermos que somos produtos de portugueses, índios e dos africanos.
Não se trata de colocar etnias, culturas e heranças em um processador e esperarmos pelo resultado.
A construção do que somos é um processo tenso.
E somos uma construção, no campo do simbólico.
O que nos separa dos outros homens é tão pouco. Mas sem querer defender uma globalização que tudo aplaina, padroniza, pasteuriza.
Insistimos no problemático, no sujo e na crise. Daí emergirá ou emergirão reflexos nestes espelhos côncavos / convexos que nos refletem.
Certo que a influência portuguesa foi muito importante, mas daí a quererem comemorar quatrocentos de presença lusa como se fossem quatrocentos anos de fundação do Ceará vai uma longa distância, interesses mercadológicos e uma interferência ideológica que, felizmente, malogrou.
Somos índios, ainda que durante séculos tenham negado a presença de grupos indígenas no Ceará, situação que começa a se reverter em pleno período autoritário, com os tremembé, passou pelos tapeba, pelos pitaguari, pelos canindé e hoje cultura, presença e terra estão asseguradas, pela organização e luta destes povos que somos nós todos.
A libertação dos escravos foi sempre tratada de um modo triunfalista, pela cultura oficial e negada pelos rançosos de plantão.
Urge buscar um equilíbrio que mostre a importância da atitude, ainda que tivéssemos poucos escravos, que nossa economia estivesse a reboque de outros interesses, mas sem o exagero do desfile de virgens na Praça da Estação representando os municípios ou dos epítetos de Terra da Luz ou da necessidade de heróis, denunciada por Brecht – no caso nosso Dragão do Mar.
Por que não foi a luta de um povo?
Por que eleger um autor de um texto plural, o cantor de uma polifonia de vozes arrevesadas, rascantes, tronchas?
A assumição de uma autoria é sempre uma interferência ideológica que era melhor resolvida com o anonimato das sagas, dos cantos épicos, dos romances e canções de gesta.
Estamos em pleno primado do capitalismo, sob a égide da Revolução Industrial, da luta de classes, dos privilégios que precisam ser mantidos.
A oligarquia Acioly ficou vinte anos no poder, o mesmo tempo que vai ficar o grupo do CIC que elegeu Tasso Jereissati, em 1986.
E podemos dizer que vinte anos hoje são bem diferentes de vinte anos no início do breve e nada saudoso século XX.
Já vetaram a jangada de propagandas governamentais por ser um índice de atraso, quando ela é sofisticadíssima e só assim pôde velejar pelos “verdes mares” do romance indigenista. Quer o digam os que navegam…
E a tradição significava atraso, num contexto onde se sonhava com uma industrialização que nunca chegou, nos galpões improvisados, nas questionáveis cooperativas e na maquinaria obsoleta.
Um dia eles serão desarmados, como acampamentos, e vão para onde os incentivos fiscais forem maiores ou mais sedutores.
A palavra chave, num determinado período, foi mudança.
Forte interferência ideológica trabalhada pelo marketing político e pela propaganda eleitoral. Deu certo até um certo tempo. Fez água quando as mudanças não vieram e o povo foi frustrado mais uma vez.
Assim se constróem os estereótipos, pela linguagem. E vão se reforçando à medida em que são envoltos por outras camadas de falas, enunciadas nesta perspectiva.
Já se disse que nenhum discurso é inocente – tampouco este meu – e assim vamos empurrando a vida e a arte com a barriga.
Voltando ao sincretismo, em que medida se deu a mestiçagem, se índios e negros nem seres humanos eram considerados…
Nos embalamos na velha rede, ainda tradição indígena, fecham nossos corpos com rezas fortes, nos emocionamos com o batuque de um maracatu.
Mas foi uma combinação desigual, entre senhor e vassalos. Ficou uma parte porque fazia sentido para a comunidade, mas violência, deslegitimação e indiferença não faltaram.
Fica impossível explicar o Ceará por aí, com estas características, ainda que a resistência se insinuasse pelas brechas, que as estratégias de mascaramento prevalecessem e que afinal se impusessem elementos da cultura indígena e africana.
Não pela via do pacto, da negociação, mas pela hegemonia, onde se cede para se dominar melhor.
Ainda hoje tem sido assim com o analfabetismo, com as condições de moradia, com os transportes públicos, para não deixar de falar nas filas dos hospitais e do desamparo do agricultor.
Este é o Ceará que deu certo. Imaginem se não tivesse dado.
No meio disso tudo, a tradição constitui o conjunto de práticas que permanecem, se atualizam, com tensões, rupturas, sob o impacto de novas influências ou “contaminações”.
Essas tradições cristalizam saberes, fazeres, marcam ofícios, lugares, celebrações.
Mas elas são vistas por alguns como imutáveis, o que constitui um grande equívoco. Mas em que medida devem se dar as modificações, alterações e atualizações?
Sob a égide das políticas públicas, como fez o Governo do estado com o artesanato?
As tradições existem para serem transgredidas e superadas, mas não para serem negadas, como se não tivessem qualquer importância ou não significassem nada para quem opera com elas.
O Ceará adotou a palavra mágica CONTEMPORÂNEO. É uma palavra conceito, uma palavra atitude.
Como se a contemporaneidade não fosse aqui e agora e não estivesse baseada nas tradições.
Uma contemporaneidade que cai dos céus, que não é construída, historicamente, é algo que não se sustenta.
Como se fosse uma “griffe” comprada nos “free-shops” da vida e nas zonas francas do Paraguai. Nada mais falso.
Não acredito em vanguarda que não supere uma tradição. Impossível fazer artes plásticas se não se sabe desenhar. Poesia concreta não se faz a partir de catálogos de tipos de gráficas. Teatro nunca foi dar pinta. Dança contemporânea precisa superar os tutus de Giselle.
Melhor compreender as tradições como o tesouro de onde poderá sair ou não uma criação nova e consistente. Perdemos a vez de fazermos o mangue- beat. Podemos fazer outras coisas. “As coisas estão no mundo”, disse o grande Paulinho da Viola.
Existe um certo marasmo na cena cultural cearense, mas isso é passageiro.
É preciso denunciar essa visão de que cultura é geração de empregos. O artista é um provocador, um contestador. Arte estimulada e incentivada por leis de mecenato e de patrocínio é chapa-branca.
Perdemos a parte do fogo? E quem vai ser o sal do mundo?
Vale a tentativa de compreender que somos não apenas trezentos, como disse Mário de Andrade, mais seis milhões.
Melhor falar em Cearás do que em Ceará.
Ficar atento para os ardis ideológicos, estereótipos e preconceitos.
Somos complicados demais para sermos compreendidos em tão pouco tempo, por tão pouca gente.
A idéia de cultura cearense é igualmente complicada. Melhor dizer cultura no Ceará, sem fazer apenas jogo de palavras. Cultura cearense dá uma idéia de cultura autóctone, de coisa genuína, autêntica, pura.
O que complica quando se trabalha com a idéia do deslocamento, da superposição, da troca, enfim, da dinâmica da cultura.
Aqui a tradição, que se fez muito forte, o que é inegável. E se mistura, no contexto contemporâneo, com a cultura de massas, tornando sem sentido a oposição popular versus erudito.
Outros ingredientes estão em jogo. Ao contrário do que pensam alguns, a tradição não pode ser vista como algo que morreu, que se esclerosou e que, por isso mesmo, fica mais fácil de ser catalogada, compartimentada estudada.
A tradição é viva. Não existe prova maior que Juazeiro do Norte: lá não se faz “macumba pra turista”. Tudo o que se manifesta faz sentido para a comunidade. São reisados que abrem procissões, bandas cabaçais que tocam nas Renovações, um fazer que integra um cotidiano nada diletante. Tudo é arte. Tudo é trabalho.
Este pode ser o ponto de partida para o novo que tanto se busca.
Não sei dizer como. Graças a Deus não tenho fórmulas e não pretendo salvar o mundo. Minha fala é uma interferência provocativa, no sentido de sacudir os que pensam que tudo já foi feito, quando tudo ainda está por fazer.
Importante que se rompa com políticas culturais que privilegiem as mídias, que insista no grandioso quando a cultura pode ser feita de pequenos gestos, de compaixão, de uma atitude generosa, de aceitação das diferenças, do outro, do respeito à pluralidade, que é da essência da democracia.
Liberdade que incomodava tanto os autoritários do golpe de 1964 e seus entusiastas.
Nada mais paradoxal que o auditório da UFC se chame Castello Branco, quando poderia ser rebatizado de Frei Tito de Alencar Lima.
O estereótipo da irreverência se transformou no deboche mais escancarado, na negação do outro, no desmonte de tudo o que se faz. Esse nihilismo avassalador complica a situação de quem produz e não tem eco.
O silêncio é uma das formas mais perversas de reagir ao que está sendo feito.
O que não significa, por outro lado, cair no oposto de achar que tudo é divino, tudo é maravilhoso porque feito no Ceará. Não somos a Bahia, ainda que o axé e o novo forró dialoguem no contexto de uma Indústria Cultural para as massas.
Humor não significa, necessariamente, o baixo corporal. Temos formas mais sutis de ironia e de desmonte da prepotência, da arrogância dos novos ricos e seus espaços sacralizados.

Fonte:
http://fdr.com.br/blog/?p=16#more-16

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