domingo, 15 de fevereiro de 2009

O Boi é o totem do sertão - A cultura do caracol.

Para onde quer que vá, o cearense leva consigo uma cultura incrustada. Tão repleta de sertão que o singular revala-se esplendor. Não tem esse, segundo as andanças do pesquisador Oswald Barroso, que não carregue um Padre Cícero daqui para qualquer destino e passe invisível no entorno de onde se erigi um altar. Não pelo estereótipo ou rótulo de ferrar preconceito, mas pelo traço marcante e jeito próprio de inventar caminhos. Se é errante, é porque decide ou tem de ser. Mas feito caracol, que traz nele a casa, não se desfaz da teia de memórias que lhe garantem uma identidade e auto-estima. Oswald Barroso fala assim, porque anda pelo Sertão cearense há 30 anos. Catando conversas, vendo o boi brincar e se transfigurar em mito popular e erudito. Numa manhã de janeiro fomos ter dois dedos de prosa que se transformaram em uma conversa quase sem fim. O cenário, antes do O POVO tomar o rumo do Sertão, foi a exposição "Vaqueiros". Tão singular e marcante para a civilização daqui que virou "permanença" no Memorial da Cultura Cearense do Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. Leia a seguir trechos desse diálogo.


OSWALD BARROSO
É pesquisador da cultura cearense, escritor, jornalista, dramaturgo, mestre/doutor em Sociologia, pela UFC, e professor da Uece. Foi pesquisador dos projetos: Artesanato, Literatura de Cordel e Festas e Folguedos, do Centro de Referência Cultural da Secretaria Estadual da Cultura (Secult); das exposições Admiráveis Belezas do Ceará e Vaqueiros, do Memorial da Cultura Cearense, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura; da Comédia do Boi, Corpo Místico, Vaqueiros e Caldeirão, todos da Cia. Boca Rica de Teatro.


O POVO - Você anda pelo Ceará colhendo histórias, coisas ...
Oswald Barroso - Desde 1975 ando pelo Ceará e já fiz parte de uns seis projetos de andanças por todos os municípios e muitos distritos cearenses. Comecei a percorrer o Estado há 30 anos. O último trabalho foi o do Caldeirão das Artes, patrocinado pelo Incra. De 26 de dezembro de 2008 a 6 de janeiro deste ano viajamos por Sobral ( Lagoa do Mato), Independência ( Cachoeira do Fogo), Miraíma ( Poço da Onça) e Canindé ( Poeira da Vaca).
OP - Procuravam o quê?
Oswald - Festas de Reis e a ligação desses festejos com a vida nos assentamentos. Em Cachoeira do Fogo, tiraram o reisado completo. Brincaram do Natal ao Dia de Reis (26 de dezembro a 6 de janeiro), percorreram centenas de casas e apresentaram a brincadeira várias vezes durante cada noite. Só em prendas para o banquete de Santos Reis, arrecadaram 54 cabeças entre caprinos e ovinos, fora as galinhas, capões, frutas e outros coisa. Cumpriram a promessa toda e, no último dia, fi zeram um grande banquete com a comunidade e arredores ao som de rabecas e guitarra.
OP - Essa diversidade cultural tem a ver com auto-estima do Ceará?
Oswald - Para provar que o cearense tem uma auto-estima extraordinária e uma identidade fortíssima, basta dizer que pra onde ele vai, ele leva sua cultura. Estou falando do povo cearense, não das elites. Onde o povo cearense vai, leva a imagem do Padre Cícero, coloca um altar e desenvolve algo no entorno. Por exemplo, o seu Antonio Ferreira, da Lagoa do Mato, que é mestre de Boi de Reisado, foi ser operário no Rio de Janeiro. E lá, onde ele ia, fazia o reisado. Sempre encontrava outros cearenses que conheciam a brincadeira e que se juntavam. Pedro Boca Rica, que morou muito tempo em São Paulo e foi operário de fábrica, depois fez a vida tocando nas ruas e rádios. Foi à custa de sua cultura que ele se manteve em São Paulo, fez nome e se sustentou. Inclusive fora do Ceará, o cearense descobre a força de sua cultura.
OP - O que é o cearense?
Oswald - (risos) O cearense é uma "caba da peste". Cabra resistente à peste, a toda a diversidade. Ele é uma espécie de um brasileiro errante que traz sua cultura como um caracol, enrolada no próprio corpo. Onde ele chega deita raízes, ou como diz o Daniel Lins, deita rizomas e expande sua cultura. A cultura cearense está espalhada na Amazônia, em todo canto que ele vai, leva sua cultura. A cultura do cearense tende a ganhar espaço. Ele assimila a cultura do lugar pra onde vai incorporada a dele própria. Quando ele sai do Estado, ele muito mais leva a cultura do que assimila.
OP - Mesmo voltando chiando?
Oswald - Ele volta chiando, mas lá não chia. Ele chia aqui porque quer se mostrar importante, ganhou o mundo e se tornou um sujeito importante. Lá fora ele é identifi cado como cearense. Agora, tudo é relativo ao espaço geográfi co e cultural dessas pessoas. Quando é da classe média ou alta urbana a coisa se modifi ca. São pessoas que já não têm contato com sua cultura, que têm uma cultura cosmopolita, generalizada do mundo, globalizada, midiática. Pessoas que desprezam a cultura cearense. A cultura cearense é tão forte que resiste até a cultura ofi cial do Estado. Essa política que quer trazer para o Ceará paraísos tropicais para estrangeiros.
OP - O cearense conserva ícones?
Oswald - O cearense leva Padre Cícero para onde vai. O ícone mais forte do Ceará é o boi que é essa coisa primordial. Figura da infância, esse totem, esse animal que o cearense se identifi ca. O boi era selvagem, solto na caatinga. Não era o boi amarrado, preso dentro de uma cerca. Era o boi barbatão, solto na caatinga. E o cearense era ao mesmo tempo encarregado de dominar esse boi e cuidar dele. O Ceará é o estado mais sertanejo do Nordeste.
OP - E o Padre Cícero?
Oswald - O Padre Cícero para o povo é um grande organizador social, conselheiro, um orientador. "Meu fi lho, vá pra aquela terra que é minha. Plante batata lá que eu lhe asseguro que se você plantar, você vende. Vai dá certo, faça isso em nome da Mãe das Dores". "Meu fi lho o que você sabe fazer?" "Sei botar um reisado". "Pois vá botar o reisado"... Então Padre Cícero para o povo é isso, esse santo que primeiro acolhia, orientava e punha a mão em cima. Esse negócio de coronel é papo de historiador, sociólogo, pra escrever livro.
OP - Você fala do caçador.
Oswald - É. Essa cultura do caçador faz do cearense, do sertanejo, um sujeito muito violento e machista. Porque o boi era caçado, vivia na mata fechada, na mata virgem e o vaqueiro saia perseguindo esse boi para derrubá-lo, subjugá-lo. Isso marca a sociedade cearense, essa violência. O vaqueiro tem essa relação dúbia com o boi. Ele persegue, subjuga o boi, mas ao mesmo tempo bota o nome do boi, cuida. É uma relação de adversário, ódio e amor. Eu vejo mesmo nesses líderes comunitários, que eles tratam os fi lhos, a mulher, como quem trata um bode, um boi. É um pessoal bruto, uma cultura violenta. Mas engraçado, o Ceará nunca deu grandes cangaceiros, sempre deu grandes beatos.
OP - Pátria de conselheiros .
Oswald - Isso vem da capacidade de imaginar. Você achando tão inóspita, tão adversa a vida aqui, você imagina outros mundos. Esses santuários como Juazeiro do Norte, com uma participação popular, uma arte desenvolvida em torno dele, com uma infl uência no Nordeste inteiro, aquilo é uma coisa extraordinária. O povo cria seus caminhos, suas histórias, seus signifi cados, seus ritos. E não tem só no Juazeiro. Santa Marciana no Camocim, em Senador Pompeu tem aquela Caminhada das Almas em memória dos mortos na seca. Madrinha Dodô, que morreu um dia desses, as pessoas botam a imagem dela junto com outros santos. Morreu um dia desses e as pessoas já tinham santifi cado ela em vida. As pessoas reconhecem essas pessoas boas, que irradiam luz. Acho que é isso, é essa tentativa de criar um reino diferente, um reino encantado. Vê essa vida aqui como desencantamento. Os reis, o rei é esse esplendor que tem no Interior de cada um ou de muitas pessoas que é irrevelado. Mas que se revela numa brincadeira dessa. As pessoas sempre acreditam que um dia vai ser revelada a grandeza delas. Por isso imaginam esses reinos fabulosos. O Juazeiro como uma Nova Jerusalém. Imaginam o São Francisco lá em Canindé. Acreditam que São Francisco está lá, não é São Francisco de Assis, na Itália, é de Canindé.
OP - O Caldeirão é auto-estima?
Oswald - O Caldeirão é um projeto extraordinário de vida, sociedade e religião. Não é que lá fosse virar o paraíso. De lá, haveria no fi nal dos tempos uma ligação com o paraíso. Como o Horto ( em Juazeiro), essa teoria foi transferida pra lá. Os caminhos vão se ligar. Tudo que tem ali, só está escondido o esplendor e se revelará. O povo acredita nisso. Isso tem a ver com as religiões orientais, religiões mágicas, anímicas, politeístas.

DEMITRI TÚLIO, da Redação


CARETA FEITA DE COURO DE BODE A máscara é adereço tradicional na Festa dos Caretas do município de Jardim, no Cariri. A brincadeira acontece na Semana Santa.

Fonte: Jornal O Povo

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