segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A doença do carnaval.



Na proa do Maracatu Nação Baobab, Raimundo Praxedes, 61, começou no Carnaval atrás do balcão - literalmente. A paixão surgiu quando ainda trabalhava numa loja que vendia serpentinas e máscaras. De lá para cá, a doença só fez piorar.

A doença foi arrasadora. Raimundo Praxedes tinha 24 anos, a saúde em dia, pernas e braços fortes, cabeça no lugar. Mesmo assim, foi tiro e queda. Trabalhava na loja do tio, no Montese. Era 1972, não lembra direito. O Bazar das Novidades comercializava artigos que, em fevereiro, iam parar na avenida, enfeitando os corpos suados dos brincantes. A loja foi o cenário do mal que veio rasteiro. Primeiro fez-se curiosidade. Depois, comichão. Até que finalmente levou Praxedes embora.

“Todo mundo que brincava Carnaval me convidava pra dançar. Eles iam comprar alguma coisa e me chamavam. Eu ia pro corso pra olhar o material que a gente vendia, que a gente fazia. A minha história de Carnaval começa aí.” Praxedes era contínuo. Passava os dias cotejando entradas e saídas, conferindo gastos, estabelecendo limites para as compras. Era um tipo de burocrata da folia. Ganhava dinheiro com a festa, mas não se interessava por ela. De tanto convidarem, uma hora ele cedeu. Foi assistir a um desfile de Carnaval. Na avenida, viu o colorido de máscaras, plumas, paetês, confetes, serpentinas. Os mesmos apetrechos que ele contabilizava. “Depois montei minha própria escola de samba.” Assim, operação lógica, de espectador a líder de escola de samba. Como dois e dois só pode ser quatro, Praxedes abraçou a doença. Passou a viver dela.

Logo no começo, antes de montar escola própria, Praxedes foi incumbido de tarefa aparentemente simples: criar um maracatu pra desfilar dentro da escola Girassol. Como se fosse uma ala de baianas. As idéias pipocaram na cuca do carnavalesco incipiente, e a luzinha piscou no alto dela: farei um maracatu diferente. O grande diferencial: ele vai ser alegre. “O maracatu não é essa batida fúnebre. É alegre, porque é do negro. É contagiante. É pra cima. O negro passava o dia inteiro na chibata, mas de noite ele tava lá tocando os tambores. Batiam nem que seja numa tábua, invocando os caboclinhos deles, sobrevivendo, fugindo. Como fez o Zumbi dos palmares.”

Nessa época, o maracatu de Fortaleza era algo estranhíssimo. Tinha as figuras dos orixás, as porta-estandartes, uma ala de africanos, outra de baianas. E índios. Não os tapebas, tremembés, pitaguarys ou jenipapo-kanindé, mas sioux, os famosos indígenas dizimados por colonizadores vindos da Inglaterra há alguns séculos. Não aqui, obviamente. Nos distantes Estados Unidos da América. Eles vestiam calças e camisas de couro cheias de uma franja que estalava no ar a cada passo de maracatu. Eram bonitos de se ver, mas totalmente alienados da cultura local. Praxedes manteve africanos, orixás e porta-estandartes, mas sacou fora os gringos. Em seu lugar, pôs índios da casa. “Há um estudo afro dentro do meu maracatu que torna ele diferente de tudo aqui em Fortaleza.”

A cura é o maracatu
Num dia qualquer de 1994, Isidoro Santos, um figurinista de Carnaval respeitadíssimo na cidade, bateu à porta de Praxedes. Por recomendação médica, tinha que fundar um maracatu. Praxedes achou a conversa estranha. Nenhum médico receitaria maracatu. Mesmo um falso médico evitaria dar tanta bandeira sugerindo ao paciente que fundasse um bloco de maracatu e fosse desfilar no Carnaval. Mas Isidoro Santos já era parceiro antigo. Por muito tempo, havia executado as criações do amigo. Praxedes tinha a idéia, Isidoro a tornava realidade. “Nem no Rio de Janeiro tinha um figurinista como ele. Eu não queria fundar o maracatu, mas sabia que era pra melhora dele. E assim nasceu o maracatu Baobab.” Ele sabia das complicações de saúde de Isidoro. Sabia de sua doença por Carnaval. Atendeu o pedido prontamente.

Mas antes da fundação do Nação Baobab por recomendação médica, Praxedes viajou. Pesquisava outros maracatus. Percorreu Norte e Nordeste, mas foi em Recife que deu de cara com um maracatu diferente. Lá, a modalidade tinha um enraizamento na cultura afro que Fortaleza nunca vira. Os blocos saíam dos terreiros e passavam por um longo ritual de oferendas e pedidos de bons agouros. Em seguida, outra etapa iniciava-se, a de agradecimentos. Estava tudo escrito no grande livro da matriz africana. Era só fuçar, cavar, cheirar e aprender. O maracatu era profundo. Espaço algum sobrava. A doença havia tomado Praxedes por inteiro. Mesmo assim, ele casou quatro vezes, fez sete filhos. “Cansei de pagar pensão”. Numa das investidas, conheceu a ex-companheira Eulina Moura, a primeira rainha mulher do maracatu de Fortaleza. “Todo mundo na cidade disse que eu estava gostando de um travesti que desfilava em maracatu.” Tudo porque era tradição ver homens vestidos de mulher desfilarem como rainhas na avenida. Mas Eulina era diferente. Era mulher de verdade.

No ano seguinte ao de sua fundação, o maracatu Nação Baobab ganhou o primeiro desfile organizado pela prefeitura da capital cearense. Era 1995. Na Bela Vista, casa do bloco e sede da empresa de realização de eventos de Praxedes, houve festa. No terreiro do bairro Jardim Jatobá, também. Porque é lá que acontecem a concentração espiritual do maracatu, “a matança de animais de duas e de quatro pernas, o arreamento da farofa e do sangue, os agradecimentos aos orixás”. Na Domingos Olímpio, as novidades levadas pelo Baobab garantiram o topo da classificação. Entre elas, uma loa genuína, alas de africanos e cenografia refinada. Era uma mistura do tradicional e do moderno. Destaque algum precisava suster na cabeça quilos de frutas de verdade. Levava as réplicas de mentirinha, feitas de plástico e bem mais leves, que lhe permitiam dançar por mais tempo e com mais graça.

“O maracatu é uma doença. Se entrou, você fica fascinado pela história. Você fica doido.” Neste ano, pela primeira vez, o Nação Baobab sai com loa própria, composta por Praxedes numa das recentes viagens. Mesmo assim, a opinião da família não muda: carnaval é coisa de louco. Da leva de filhos, nenhum integra o maracatu. Os filhos são outros. Vêm da comunidade da Bela Vista. No próximo domingo, “a gente quer montar uma coisa bonita e se orgulhar do desfile. A rainha vai ser rainha, ela passa três meses costurando o vestido dela pra ser a melhor rainha da avenida. Você vai ser um rei, mas durante uma hora tu vai ser um rei de verdade. Meu rei é um rei de verdade. E o cara mora ali, num barraco em terreno invadido.” Na Domingos Olímpio, porém, Praxedes vira curandeiro: para qualquer doença, receita maracatu. Tira o peso das costas dos seus destaques. Faz da fruta artificial um encantamento. O feitiço dura 40 minutos, o tempo exato do desfile.

Fonte: Jornal O Povo

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