domingo, 17 de maio de 2009

Travessa Crato - Forró do Raimundo


Por detrás de grandes óculos de grau, Raimundo dos queijos acha graça do bom humor dos frequentadores de sua "confraria". Ele ajuda a animar o Centro. Todos os domingos

Como e sem falta, a carga de queijos frescos chega todos os dias à confraria do “seu” Raimundo. Coalho e de manteiga. Supervisiona tudo de perto, enquanto o ajudante recolhe o material, ele olha uma por uma, para ter certeza se a qualidade é boa mesmo. Levanta e abaixa os olhos, afasta e aproxima a mercadoria. Aprovada, enfileira nas prateleiras de madeira ou guarda no balcão de vidro que divide a pequena mercearia, bar ou confraria, como preferir. Pode pedir de muitos quilos sem medo. No final do dia, está quase tudo vendido. “Não gosto de dizer o quanto eu vendo não, faz bem não. Cresce os olhos. Mas pode colocar aí que eu vendo bem”. Então está certo.

Faz muito tempo que Raimundo deixou de conduzir o sobrenome que recebeu na pia batismal. Se alguém perguntar pelo “seu” Oliveira ou “seu” Araújo ali pelas bandas da Travessa Crato, ruazinha entre a Conde D´Eu e General Bezerril, provavelmente vai passar batido. Agora, se mencionar o Raimundo dos Queijos, pronto! São muitas as direções no vazio de domingo do Centro da cidade. “De primeiro, isso tudo era um deserto, ficava sem um pé de pessoa. Depois que comecei a abrir aos domingos, foi uma maravilha”, lembra a mudança sem falsa modéstia Raimundo de Oliveira Araújo, 73 anos, “dos Queijos” há três décadas. Tempo marcado desde que o comerciante do ramo de frigorífico decidiu investir por outro norte mais lucrativo, porque “é ruim para um velho trabalhar com carne pesada”. Hoje, seu pequeno bar, de cadeiras distribuídas no meio da travessa, é o responsável por um “alarido organizado” em pleno Centro de Fortaleza que acontece há 10 anos aos domingos.

O nome entrega bem: é o queijo a especialidade. Vindo de Iracema e de Tauá, o melhor no crivo de Raimundo. Mas não para por aí. Raimundo também trabalha com toda qualidade de doces, rapadura, ovo de codorna, castanha de caju. A fama mais recente, no entanto, veio por outro motivo. A ideia é muito simples e veio do engenheiro Ernando Honorato, casado com uma prima de Raimundo: abrir aos domingos e preparar os petiscos, seguindo cardápios diferentes a cada semana. Galinha, carneiro cozido, mão de vaca. “Ele adora inventar”, sintetiza o dono do bar. Espalhou umas mesas pela travessa. A cerveja está sempre gelada e a clientela é fiel. Ainda falta uma coisa. “Para completar, a banda dos cegos vem tocar a partir das 10 horas”. Quem são as pessoas da banda, “seu” Raimundo? “Sei do nome não, só sei que são os cegos”, ri-se meio encabulado.

Regional Asa Branca
Os irmãos Vanda Lúcia no vocal e triângulo; Francisco Honório, no violão; Valdeci, na sanfona, formam com outros dois amigos o grupo Regional Asa Branca, narrando com o som doce e marcado o mundo que não podem ver. Tocam de tudo, é só pedir. E tome São João na Roça, Olhinhos de Fogueira, Quero chá, Eu não preciso de você. “Eiiiiiiiiiita que essa é boa, viu?”, grita um, com a garrafa de cerveja debaixo do sovaco, dançando ao som do forró. “Esse aí dança até com o ‘plim’ do garfo caindo do chão”, brinca Raimundo, já bem mais à vontade para a conversa.

Tem sempre tanta gente assim, seu Raimundo? A visita foi no último domingo, dia que ele considerou de movimento fraco, embora quase todas as mesas estivessem ocupadas. “Você não viu nada! Hoje, é porque é o Dia das Mães. Num dia bom, vendo 20 caixas”, calcula. E não há como falar do simpático Raimundo sem ligá-lo ao seu estabelecimento. O espírito é da informalidade. De camiseta, bermuda e tênis, ele chama muitos dos clientes pelo nome, abre o sorriso e os braços para as velhas palmadinhas nas costas. Bem sabe ele que a regra é tratar bem, mas, sinceramente, ele não precisa de esforço. Geralmente fica ali, no cantinho, escutando as histórias da moçada que frequenta seu estabelecimento. A maioria, na faixa dos 50 ou 60 anos. “’Seu’ Raimundo, prepare ali uma carne de sol e anote que depois eu venho acertar”, se aproxima uma senhora de cabelos curtos e escovados, salto alto e maquiagem. “Fiado tem todo dia”, avisa ele.

Todos são loucos...
“Aqui todos são loucos... uns pelos outros”, avisava a placa antiga, retirada há pouco tempo. Raimundo não explica direito, mas diz que resolveu tirar porque havia uns querendo ser melhores do que os outros. “Hoje quero fechar meio-dia, porque é o dia das patroas, né?”, avisa, para corrigir-se em seguida: “Ora mais! Domingo passado eu queria ter saído às duas e só consegui fechar o portão às cinco (da tarde). Tem cliente que só vai embora quando a gente expulsa”. Todos são muito boa gente, como ele garante. Pessoas de todas as categorias de profissão. “Tem o Waldemar Caracas, fundador do time do Ferroviário. Tem 101 anos. Vem tomar vinho todos os domingos. Vinho seco da melhor qualidade!”, assegura, sem revelar a marca.

Ora mais, ali o assunto é sério. Por mais que goste de beber de vez em quando, esse lugar não é o trabalho. Por mais que o domingo faça todo sucesso, a festa ainda continuará a se limitar a esse dia da semana. “Eu não dou para trabalhar só com bebida. Nem vendo cachaça. Não tem coisa pior do que bêbo, tem?”.

Raimundo nasceu em Porção, distrito de Chaval, região Norte do Ceará. A primeira profissão herdou do pai, era vaqueiro. “O mundo vai levando a gente e quando eu vi, tava aqui”. Mora hoje na cidade 2000 e os cerca de sete quilômetros que separam a casa do trabalho compõem o único percurso de sua rotina. É casado, “e muito bem casado”, tem três filhos homens e uma mulher. “E eu aqui sou o neto”, grita um gaiato que escuta a conversa. O Centro de Fortaleza de Seu Raimundo limita-se àquelas duas esquinas da Travessa. Quando muito, passeia pela Praça do Ferreira, três quarteirões à frente. Até para resolver as coisas ali perto, pede a um funcionário. “O Centro para mim é só trabalho mesmo”, resume. Para já, já acrescentar que o Raimundo dos Queijos se diverte muito no Raimundo dos Queijos. “Aqui é minha praia. Dá pra conversar, encontrar amigo, é bom demais! No dia em que por acaso não trabalhar, gosto de ficar em casa, Deus o livre de Centro”.

Fonte: Jornal O Povo

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