domingo, 25 de outubro de 2009

Dois autores, uma só fome



Que relações podem se estabelecer entre as obras de Patativa do Assaré e Josué de Castro? abaixo, o jornalista e pesquisador Luis Celestino Jr. Esclarece essa proximidade poético-acadêmica

``Nunca diga nordestino
que Deus lhe deu um destino
causador do padecer
Nunca diga que é o pecado
que lhe deixa fracassado
sem condição de viver``
(Nordestino sim, nordestinado não, de Patativa do Assaré)

Falar de seca e suas representações no âmbito da produção cultural é tarefa difícil pela quantidade de produções nordestinas seja na literatura, nas artes plásticas, na fotografia ou no teatro. Rodolfo Teófilo, por exemplo, publicou no século XIX um clássico do naturalismo brasileiro: A Fome. Romance de mais de 500 páginas é marcado por cenas fortes em que o ser humano age instintivamente na luta para saciar a mais primitiva das suas necessidades. Não seria injusto apontar a obra como precursora da antropofagia, tão cultuada pelos modernistas brasileiros mais de trinta anos depois (a obra de Teófilo é de 1890).

Nenhum artista, no entanto, teve a obra tão marcada pela seca e suas consequências quanto Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. A condição social foi algo marcante na obra do poeta. O êxodo rural (Triste partida), a reforma agrária (Reforma agrária), o drama dos menores abandonados (Menino de rua) e outros temas marcaram o seu vasto trabalho. A imagem de simples agricultor engajado em causas sociais, consciente de sua condição dentro da sociedade, e sempre denunciando as mazelas do Nordeste alimentaram a imagem de um gênio inato. No prefácio do já clássico Cante lá que eu canto cá, de 1978, Plácido Cidade Nuvens o define como ``poeta social``: ``A realidade local emerge com toda sua vitalidade na poesia de Patativa. Não apenas na candura lírica do seu telurismo acendrado. Mas numa configuração social bem delineada``.

Latente a todos os temas sociais aparece a ``fome``. Algo de difícil definição e conceituação, fome é algo ``que se sente`` e sentimento é algo que, quando retratado pela ciência, sempre causa controvérsias, para muitos sendo algo impenetrável. Quando se fala em construção de imagens e de representações, dado esse caráter ``sentimental``, a fome é quase sempre algo abstrato. A imagem-clichê da criança africana de cabeça grande cercada por moscas e suja de grãos de arroz, de tão repetida, pouco comunica, apesar de ser chocante. Serve para a imagem da fome no Nordeste?

A obra de Patativa remete a uma série de imagens e representações dada a sua vasta produção. Na antologia poética publicada em 2001 pela Fundação Demócrito Rocha, Gilmar de Carvalho, o organizador, já alertava para o fato de que a obra do poeta é ``um único e grande livro onde cada poema é um canto, a sua rapsódia, ao mesmo tempo pessoal e universal``.

Além disso, seu trabalho tem proximidade com a obra de Josué de Castro, com destaque para o clássico Geografia da Fome. Em Patativa, vemos essa aproximação dos conceitos de fome apresentados pelo médico pernambucano. Outro parentesco reside em Norbert Elias e sua obra Mozart: Sociologia de um gênio. Nesse sentido, a obra de Patativa é melhor compreendida quando afastamos a ideia de algo ``interior`` que se processa de forma autônoma num ``gênio`` e olhamos para um homem extremamente envolvido com seu meio.

Fome social
A seca é a grande responsável por boa parte da diáspora do sertão nordestino durante todo o século XX. Fazendo referências a imagens construídas em uma série de obras (O Quinze, de Rachel de Queiroz; A Paraíba e seus problemas, de José Américo de Almeida; O Nordeste, de Gilberto Freyre; História das secas no Ceará, de Rodolfo Teófilo), além dos resultados de seus inquéritos sociais, Josué de Castro apresenta uma imagem do êxodo fruto da fome: ``Assim esgotadas as suas esperanças e reservas alimentares de toda ordem, iniciam os sertanejos a retirada, despejados do sertão pelo flagelo implacável. Sem água e sem alimentos, começa o terrível êxodo.

Na tentativa de associação com a obra de Castro, vem à mente a célebre obra Triste Partida (``Setembro passou com oitubro e novembro / Já tamo em dezembro / meu Deus que há de nós? Assim fala o pobre do seco nordeste / com medo da peste / da fome feroz``), mas podemos acrescentar outras, como Nordestino sim, nordestinado não, em que o poeta rejeita a ideia de um castigo divino ou destino pré-traçado que condena o nordestino à miséria. No poema Emigrante Nordestino, esse diálogo é acentuado: ``Quando há inverno abundante / No meu Nordeste querido, / Fica o pobre em um instante / Do sofrimento esquecido / Tudo é graça, paz e riso / Reina um verde paraíso / Por vale, serra e sertão, / Porém não havendo inverno, / Reina um verdadeiro inferno / De dor e de confusão``.

As imagens da fome em Patativa constituem o mosaico de uma sensibilidade que se preocupou com outros temas sociais como a miséria de uma forma geral, o êxodo rural, os menores abandonados, a seca, a reforma agrária etc. A fome é imagem forte na sua obra (``Mamãe, meus brinquedo! / Meu pé de fulô!``), mas não castigo divino e sim fruto de condições histórico-econômico-sociais.

>> LUIS CELESTINO JR. é jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e autor do livro A Fome na imprensa .

Fonte: Jornal O Povo

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